Por Rafael Oliveira
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O Brasil tem a maior população negra fora da
África.[1] No censo de 2010[2], 52,67% da população brasileira se declarou
não-branca.[3] Porém, em nossa sociedade marcada pelo colonialismo
europeu, há um grande processo de desvalorização de tudo que possa a ser
relacionado a África. De acordo com Ricardo Ferreira,
Vivemos em uma sociedade na qual
os valores determinados por uma cultura branca europeia são vistos como
superiores, ocasionando aos afro-descendentes o desenvolvimento de auto-imagem
negativa, acompanhada de baixa auto-estima, o que muito contribui para gerar
condições desumanas de existência e tende a perpetuar-se em um processo de
exclusão, sustentado por complexo mecanismo social.[4]
Nesse
trabalho pretendemos discutir a questão do negro a partir de três pontos: o
preconceito existente na sociedade brasileira contra os negros, a formação da
identidade negra, e como o cabelo é utilizado na afirmação de sua identidade.
Eu não
sou preconceituoso, só "num" gosto de preto.
O discurso de que não há preconceito no Brasil, porque
aqui existe a chamada democracia racial, há muito vem sendo questionado no
campo acadêmico. De acordo com Da Matta, a democracia racial foi definida como
o mito fundador das relações raciais brasileiras[5], muito difundida por
Gilberto Freyre, que em seu livro Casa Grande & Senzala pregava que no
Brasil as três raças conviviam harmonicamente[6]. Assim, parte-se do
pressuposto de que por ser um país onde há uma mistura das “três raças –
indígena, branca e negra”, todo mundo é um pouco miscigenado e portando não é
possível se ter preconceito. Para Sansone, “é o mito aceito pela grande
maioria, reproduzido na vida cotidiana”[7].
Porém,
como destaca Ferreira, “o preconceito revela-se no dia-a-dia, nas situações
mais simples”[8]. Se pararmos para analisar, podemos perceber que em quase
todos os aspectos da sociedade, o negro ainda é visto como inferior ao branco.
Na mídia, a maioria das modelos são brancas. Nas novelas, as personagens negras
só possuem espaço em papéis menores, como de empregada doméstica.[9] Esse
mecanismo serve para demarcar precisamente o local que cada “raça” deve ocupar
na sociedade. Porém não podemos colocar a mídia como grande vilã, pois as
telenovelas não só disseminam preconceitos, como se criam em torno deles.
Muitas
das vezes, o preconceito racial vem escondido atrás de frases educadas e
eufemismos, alimentando o mito de que somos um país onde se aceita todas as
diferenças.[10] Muitas pessoas com medo de parecerem preconceituosas por
chamarem negros de negros, acabam adotando o discurso “politicamente correto” e
chamando-os de morenos, marrom bombom, etc. “É um recurso simbólico de fuga de
uma realidade em que a discriminação impera”.[11] Sinsone nos diz que até
mesmo dentro das famílias o preconceito está presente pois os membros com
traços mais negróides são considerados mais feios.[12]
Ainda
de acordo com Sinsone,
As relações sociais e a posição
dos afro-latinos são vistas por um número considerável de estudiosos, em sua
maioria não latino-americanos, como piores do que em sociedades mais
polarizadas racialmente, em particular os Estados Unidos.[13]
Assim,
O Brasil, com sua enorme
população negra, que antigamente era retratado como um paraíso racial, é agora
visto como um inferno racial.[14]
Sou negro
sim.
É através desse processo de interação social, que
são constituídas as identidades individuas e coletivas.[15] Quando uma
pessoa negra, em processo de formação de identidade, convive em um espaço onde
é sempre visto como inferior, ela acaba internalizando e reproduzindo essa
concepção. É exatamente isso que ocorre nas escolas brasileiras atualmente.[16] É
preciso uma rediscussão do modelo escolar de modo a não tratar o negro como
inferior no dia-a-dia e nos livros didáticos. É preciso fazer entender que a cultura
negra não é inferior ou “endemoniada”. Nas palavras de Sansone,
A cultura negra pode ser definida
como a subcultura específica das pessoas de origem africana dentro de um
sistema social que enfatize a cor, ou a ascendência a partir da cor, como um critério
importante de diferenciação ou segregação das pessoas.[17]
Logo,
A construção da identidade negra
está associada a usos específicos do corpo (negro), e isso a distingue da
maioria das outras identidades étnicas. [...] Branco e negro existem, em larga
medida, em relação um ao outro; as “diferenças” entre negros e brancos variam
conforme o contexto e precisam ser definidas em relação a sistemas nacionais
específicos e a hierarquias globais de poder, que foram legitimados em termos
raciais e que legitimam os termos raciais.[18]
Porém
Ferreira acredita que o contato com outros negros faz com que o negro tome
consciência identitária de grupo, transformando os valores negativos e
estigmatizados aos quais são relacionados, em afirmações positivas e que criam
sentimento de pertencimento à “raça negra”.[19]
No Brasil, a negritude não é uma
categoria racial fixada numa diferença biológica, mas uma identidade racial e
étnica que pode basear-se numa multiplicidade de fatores: o modo de administrar
a aparência física negra, o uso de traços culturais associados à tradição
afro-brasileira (particularmente na religião, na música e na culinária), o status,
ou uma combinação desses fatores.[20]
Com
base nessa discussão, trataremos, nesse trabalho, com o uso do cabelo como
construtor da identidade negra.
Cabelo e
Identidade
Meu cabelo duro é assim, cabelo
duro, de pixaim/ Nega não precisa nem falar, nega não precisa nem dizer/ Que
meu cabelo duro se parece é com você...[21]
Nega do cabelo duro/ Qual é o
pente que te penteia/ Teu cabelo está a moda/ O teu corpo bamboleia/Misamplias
ferro e fogo/ Não desmancha nem na areia...[22]
A
identidade negra é construída (ou reconstruída) cotidianamente como uma forma
de autoafirmação em um ambiente hostil, onde qualquer relação com a África é
vista como portadora de inferioridade. Há varias formas de se (re)construir
essa identidade, e uma delas é através da adoção do cabelo afro.
Nilma
Gomes, em seu artigo Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo
crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural? nos dá
um panorama do que é ser uma menina negra na escola. Segundo ela:
As meninas negras, durante a
infância, são submetidas a verdadeiros rituais de manipulação do cabelo,
realizado pela mãe, tia, irmã mais velha ou pelo adulto mais próximo. As
tranças são as primeiras técnicas utilizadas. [23]
Para
a autora, isso se dá numa tentativa de romper com o estereótipo de negro sujo,
descabelado e feio. Ela destaca ainda que algumas pessoas fazem as tranças
porque gostam, o que demonstra a estreita relação entre o negro, a identidade
negra, e o cabelo.[24] A verdade é que mesmo com todo esse ritual e com a
tentativa de quebra de estereótipo, a criança negra sofre com preconceito
devido ao cabelo. É comum apelidos pejorativos tais como “cabelo de Bombril”,
“cabelo – duro”, etc. Muitas vezes esses são os primeiros contatos desses
negros com o preconceito, e acabam criando valores que eles levam para o resto
da vida. Assim, “a rejeição do cabelo pode levar a uma sensação de
inferioridade e de baixa auto-estima.”[25] Quando adolescentes
e adultos, esses negros ainda sofrem influência da mídia e do consumo
cosmetológico, que tentam padronizar e unificar o padrão de beleza humano em um
padrão europeu.[26]
Para
Gomes, “construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que,
historicamente, ensina o negro, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso
negar-se a si mesmo, é um desafio enfrentado pelos negros brasileiros”[27]
Esse desafio faz com que, atualmente, ocorra “um
crescimento de uma estética negra com uma valorização positiva de aspectos
fenótipos naturais”[28]. Porém essa busca pela afirmação da identidade negra
com os cabelos não é novidade. Na década de 1960, surgiu o movimento Black
Power, que pregava o não alisamento do cabelo crespo com o slogan de “Black is
Beautiful”, tendo principalmente no Rio e em São Paulo seus grandes difusores.[29] Na
década de 1970, foi a vez do rastafarianismo emergir para modificar a imagem de
negro feio.[30]
De acordo com Rita Maia, o “uso de cabelos
‘naturais’ (sem processo de alisamento), arrumado em complexos trançados ou
então ao estilo ‘Black Power’ [...]”[31] significa “[...] uma atitude de
valoração positiva e preservação dos traços fenotípicos negros.”[32]
Ou seja, através dos Black Power ou dos dreadlocks
dos rastaman, uma parte dos negros modelavam seu cabelo de modo a marcar sua
identidade negra. Não havia mais uma busca pelo padrão de beleza europeu, mas
sim a valorização de sua beleza natural. De acordo com Macedo,
As tranças dreadlocks foram
tomadas pelo ativismo negro de várias partes do mundo como uma forma de
afirmação da identidade negra e de posicionamento político, algo que já havia
acontecido com o corte “afro” ou black power na década anterior. Além desse
aspecto político, esses fatos demonstravam que era possível criar um estilo
negro próprio, desde que começássemos a valorizar o nosso corpo de forma
sincera e livre de estereótipos.[33]
Conclusão
É
evidente que apenas a adoção do estilo de cabelo africano não significa a
adoção da identidade negra. Como vimos a construção da identidade se dá através
de vários mecanismos sociais e culturais, onde o negro vai se familiarizando
com a chamada cultura negra e com a causa de valorização do grupo. O movimento
negro tem papel fundamental neste processo, visto que é através dele que várias
conquistas em prol dos negros são conseguidas, e, além disso, permite a difusão
de discussões sobre o que é ser negro em um país onde o mito da democracia
racial já está impregnado na sociedade. Porém, devemos ressaltar que a
utilização do cabelo afro tem importância, pois demarca a conquista de
território na sociedade pelo negro, sempre subjulgado e visto com inferior. A
conquista da equidade se dá através de pequenos passos, onde o principal dele é
a aceitação do ser negro e o entendimento do que é ser negro. Como diria
Goddard,
Eu pensava ter dado um grande
salto para frente e percebo que na verdade apenas ensaiei os primeiros tímidos
passos de uma longa marcha.
Referências Bibliográficas
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responsabilidade social com mulheres negras. Disponível em:
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Referência
Cinematográfica
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2000.
[1] FERREIRA, Ricardo Franklin. Afro-descendente: identidade
em construção. São Paulo: EDUC; Rio de Janeiro: Pallas,2004. p.12
[2] IBGE. Atlas do Censo Demográfico. 2010. Disponível em:
www.ibge.gov.br
[3] 43,1% se declarou parda; 7,6% se declarou preta; 1% se declarou
amarela; e 0,4% se declarou indígena.
[4] FERREIRA, Op. Cit., p. 12
[5] SANSONE, Lívio. Negritude sem etnicidade: o local e o
global nas relações raciais e na produção cultural negra do Brasil.
Salvador: Edufba; Pallas, 2007. p.11
[6] FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Editora Record, Rio de Janeiro, 1998.
[7] SANSONE, Op. Cit., p. 11
[8] FERREIRA, Op. Cit., p.18
[9] A NEGAÇÃO DO BRASIL. Direção de Joel Zito Araújo. Produção de Casa
de Criação. Brasil, 2000.
[10] FERREIRA, Op. Cit., p. 18
[11] Ibidem, p.18
[12] SANSONE, Op. Cit.,,p.19
[13] Ibidem, p.21
[14] Ibidem,p .21
[15] FERREIRA, Op. Cit., p.19
[16] GOMES, Nilma Lino. Trajetórias
escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou
ressignificação cultural? Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n21/n21a03 Acesso em: 02/02/2014.
[17] SANSONE, Op. Cit., p. 23
[18] Ibidem, p. 24
[19] FERREIRA, Op. Cit., p.
20
[20] SANSONE, Op. Cit., p. 25
[21] Meu Cabelo Duro é assim. In: 13 - Chiclete
com Banana. BMG – Ariola, 1994. Composição: Bell Marques/ Wadinho
Marques/ Paulinho Camafêu.
[22] Nega do cabelo duro. In: Anjos do
Inferno. Columbia, 1942. Composição: Rubens Soares/David Nasser.
[23] GOMES, Nilma Lino. Trajetórias
escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou
ressignificação cultural? Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n21/n21a03 Acesso em: 02/02/2014.
[24] Ibidem.
[25] Ibidem.
[26] AMÉRICO, Marcia Cristina. Discutindo
educação, Identidade, auto-estima e responsabilidade social com mulheres
negras. Disponível em:
http://www.unimep.br/phpg/mostraacademica/anais/7mostra/5/116.pdf Acesso em:
01/02/2014
[27] Ibidem.
[28] COUTINHO, Cassi Ladi Reis. Estética
Negra: o jornal como fonte de pesquisa. Disponível em:
http://94.23.146.173/ficheros/89c5b2607b44161368ab4cda36b2a789.pdf. Acesso em:
01/02/2014
[29] Ibidem.
[30] RABELO, Danilo. Rastafari: Identidade
e Hibridismo Cultural na Jamaica, 1930-1981. Dissertação de Doutorado
em História na UnB. Disponível em:
http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/6447/1/2006_Danilo%20Rabelo.pdf
[31] MAIA, Rita. O Prazer da Militância: a
ética estética da “negritude ilê”. In: Diálogos & Ciência –
Revista da Rede de Ensino FTC. Ano V, n.11, set. 2007. Disponível em:
http://www.ftc.br/dialogos
[32] Ibidem.
[33] MACEDO, Márcio José. “Quero uma nega
de cabelo duro”. São Paulo: Disponível em: www.afirma.inf.br,
23/09/2004. Acesso em: 21/11/2012.
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