sábado, 19 de abril de 2014

Por Rafael Oliveira

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O Brasil tem a maior população negra fora da África.[1] No censo de 2010[2], 52,67% da população brasileira se declarou não-branca.[3] Porém, em nossa sociedade marcada pelo colonialismo europeu, há um grande processo de desvalorização de tudo que possa a ser relacionado a África. De acordo com Ricardo Ferreira,

Vivemos em uma sociedade na qual os valores determinados por uma cultura branca europeia são vistos como superiores, ocasionando aos afro-descendentes o desenvolvimento de auto-imagem negativa, acompanhada de baixa auto-estima, o que muito contribui para gerar condições desumanas de existência e tende a perpetuar-se em um processo de exclusão, sustentado por complexo mecanismo social.[4]

            Nesse trabalho pretendemos discutir a questão do negro a partir de três pontos: o preconceito existente na sociedade brasileira contra os negros, a formação da identidade negra, e como o cabelo é utilizado na afirmação de sua identidade.

Eu não sou preconceituoso, só "num" gosto de preto.

O discurso de que não há preconceito no Brasil, porque aqui existe a chamada democracia racial, há muito vem sendo questionado no campo acadêmico. De acordo com Da Matta, a democracia racial foi definida como o mito fundador das relações raciais brasileiras[5], muito difundida por Gilberto Freyre, que em seu livro Casa Grande & Senzala pregava que no Brasil as três raças conviviam harmonicamente[6]. Assim, parte-se do pressuposto de que por ser um país onde há uma mistura das “três raças – indígena, branca e negra”, todo mundo é um pouco miscigenado e portando não é possível se ter preconceito. Para Sansone, “é o mito aceito pela grande maioria, reproduzido na vida cotidiana”[7].
            Porém, como destaca Ferreira, “o preconceito revela-se no dia-a-dia, nas situações mais simples”[8]. Se pararmos para analisar, podemos perceber que em quase todos os aspectos da sociedade, o negro ainda é visto como inferior ao branco. Na mídia, a maioria das modelos são brancas. Nas novelas, as personagens negras só possuem espaço em papéis menores, como de empregada doméstica.[9] Esse mecanismo serve para demarcar precisamente o local que cada “raça” deve ocupar na sociedade. Porém não podemos colocar a mídia como grande vilã, pois as telenovelas não só disseminam preconceitos, como se criam em torno deles.
            Muitas das vezes, o preconceito racial vem escondido atrás de frases educadas e eufemismos, alimentando o mito de que somos um país onde se aceita todas as diferenças.[10] Muitas pessoas com medo de parecerem preconceituosas por chamarem negros de negros, acabam adotando o discurso “politicamente correto” e chamando-os de morenos, marrom bombom, etc. “É um recurso simbólico de fuga de uma realidade em que a discriminação impera”.[11] Sinsone nos diz que até mesmo dentro das famílias o preconceito está presente pois os membros com traços mais negróides são considerados mais feios.[12]
            Ainda de acordo com Sinsone,

As relações sociais e a posição dos afro-latinos são vistas por um número considerável de estudiosos, em sua maioria não latino-americanos, como piores do que em sociedades mais polarizadas racialmente, em particular os Estados Unidos.[13]
            Assim,
O Brasil, com sua enorme população negra, que antigamente era retratado como um paraíso racial, é agora visto como um inferno racial.[14]

Sou negro sim.

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É através desse processo de interação social, que são constituídas as identidades individuas e coletivas.[15] Quando uma pessoa negra, em processo de formação de identidade, convive em um espaço onde é sempre visto como inferior, ela acaba internalizando e reproduzindo essa concepção. É exatamente isso que ocorre nas escolas brasileiras atualmente.[16] É preciso uma rediscussão do modelo escolar de modo a não tratar o negro como inferior no dia-a-dia e nos livros didáticos. É preciso fazer entender que a cultura negra não é inferior ou “endemoniada”. Nas palavras de Sansone,

A cultura negra pode ser definida como a subcultura específica das pessoas de origem africana dentro de um sistema social que enfatize a cor, ou a ascendência a partir da cor, como um critério importante de diferenciação ou segregação das pessoas.[17]

Logo,

A construção da identidade negra está associada a usos específicos do corpo (negro), e isso a distingue da maioria das outras identidades étnicas. [...] Branco e negro existem, em larga medida, em relação um ao outro; as “diferenças” entre negros e brancos variam conforme o contexto e precisam ser definidas em relação a sistemas nacionais específicos e a hierarquias globais de poder, que foram legitimados em termos raciais e que legitimam os termos raciais.[18]

            Porém Ferreira acredita que o contato com outros negros faz com que o negro tome consciência identitária de grupo, transformando os valores negativos e estigmatizados aos quais são relacionados, em afirmações positivas e que criam sentimento de pertencimento à “raça negra”.[19]

No Brasil, a negritude não é uma categoria racial fixada numa diferença biológica, mas uma identidade racial e étnica que pode basear-se numa multiplicidade de fatores: o modo de administrar a aparência física negra, o uso de traços culturais associados à tradição afro-brasileira (particularmente na religião, na música e na culinária), o status, ou uma combinação desses fatores.[20]

            Com base nessa discussão, trataremos, nesse trabalho, com o uso do cabelo como construtor da identidade negra.

Cabelo e Identidade

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Meu cabelo duro é assim, cabelo duro, de pixaim/ Nega não precisa nem falar, nega não precisa nem dizer/ Que meu cabelo duro se parece é com você...[21]

Nega do cabelo duro/ Qual é o pente que te penteia/ Teu cabelo está a moda/ O teu corpo bamboleia/Misamplias ferro e fogo/ Não desmancha nem na areia...[22]

            A identidade negra é construída (ou reconstruída) cotidianamente como uma forma de autoafirmação em um ambiente hostil, onde qualquer relação com a África é vista como portadora de inferioridade. Há varias formas de se (re)construir essa identidade, e uma delas é através da adoção do cabelo afro.
            Nilma Gomes, em seu artigo Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural? nos dá um panorama do que é ser uma menina negra na escola. Segundo ela:

As meninas negras, durante a infância, são submetidas a verdadeiros rituais de manipulação do cabelo, realizado pela mãe, tia, irmã mais velha ou pelo adulto mais próximo. As tranças são as primeiras técnicas utilizadas. [23]

            Para a autora, isso se dá numa tentativa de romper com o estereótipo de negro sujo, descabelado e feio. Ela destaca ainda que algumas pessoas fazem as tranças porque gostam, o que demonstra a estreita relação entre o negro, a identidade negra, e o cabelo.[24] A verdade é que mesmo com todo esse ritual e com a tentativa de quebra de estereótipo, a criança negra sofre com preconceito devido ao cabelo. É comum apelidos pejorativos tais como “cabelo de Bombril”, “cabelo – duro”, etc. Muitas vezes esses são os primeiros contatos desses negros com o preconceito, e acabam criando valores que eles levam para o resto da vida. Assim, “a rejeição do cabelo pode levar a uma sensação de inferioridade e de baixa auto-estima.”[25]   Quando adolescentes e adultos, esses negros ainda sofrem influência da mídia e do consumo cosmetológico, que tentam padronizar e unificar o padrão de beleza humano em um padrão europeu.[26]
            Para Gomes, “construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que, historicamente, ensina o negro, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo, é um desafio enfrentado pelos negros brasileiros”[27]
Esse desafio faz com que, atualmente, ocorra “um crescimento de uma estética negra com uma valorização positiva de aspectos fenótipos naturais”[28]. Porém essa busca pela afirmação da identidade negra com os cabelos não é novidade. Na década de 1960, surgiu o movimento Black Power, que pregava o não alisamento do cabelo crespo com o slogan de “Black is Beautiful”, tendo principalmente no Rio e em São Paulo seus grandes difusores.[29] Na década de 1970, foi a vez do rastafarianismo emergir para modificar a imagem de negro feio.[30]
De acordo com Rita Maia, o “uso de cabelos ‘naturais’ (sem processo de alisamento), arrumado em complexos trançados ou então ao estilo ‘Black Power’ [...]”[31] significa “[...] uma atitude de valoração positiva e preservação dos traços fenotípicos negros.”[32]
Ou seja, através dos Black Power ou dos dreadlocks dos rastaman, uma parte dos negros modelavam seu cabelo de modo a marcar sua identidade negra. Não havia mais uma busca pelo padrão de beleza europeu, mas sim a valorização de sua beleza natural. De acordo com Macedo,

As tranças dreadlocks foram tomadas pelo ativismo negro de várias partes do mundo como uma forma de afirmação da identidade negra e de posicionamento político, algo que já havia acontecido com o corte “afro” ou black power na década anterior. Além desse aspecto político, esses fatos demonstravam que era possível criar um estilo negro próprio, desde que começássemos a valorizar o nosso corpo de forma sincera e livre de estereótipos.[33]

Conclusão

            É evidente que apenas a adoção do estilo de cabelo africano não significa a adoção da identidade negra. Como vimos a construção da identidade se dá através de vários mecanismos sociais e culturais, onde o negro vai se familiarizando com a chamada cultura negra e com a causa de valorização do grupo. O movimento negro tem papel fundamental neste processo, visto que é através dele que várias conquistas em prol dos negros são conseguidas, e, além disso, permite a difusão de discussões sobre o que é ser negro em um país onde o mito da democracia racial já está impregnado na sociedade. Porém, devemos ressaltar que a utilização do cabelo afro tem importância, pois demarca a conquista de território na sociedade pelo negro, sempre subjulgado e visto com inferior. A conquista da equidade se dá através de pequenos passos, onde o principal dele é a aceitação do ser negro e o entendimento do que é ser negro. Como diria Goddard,

Eu pensava ter dado um grande salto para frente e percebo que na verdade apenas ensaiei os primeiros tímidos passos de uma longa marcha.

  
Referências Bibliográficas
AMÉRICO, Marcia Cristina. Discutindo educação, Identidade, auto-estima e responsabilidade social com  mulheres negras. Disponível em: http://www.unimep.br/phpg/mostraacademica/anais/7mostra/5/116.pdf Acesso em: 01/02/2014
COUTINHO, Cassi Ladi Reis. Estética Negra: o jornal como fonte de pesquisa. Disponível em: http://94.23.146.173/ficheros/89c5b2607b44161368ab4cda36b2a789.pdf. Acesso em: 01/02/2014
FERREIRA, Ricardo Franklin. Afro-descendente: identidade em construção. São Paulo: EDUC; Rio de Janeiro: Pallas, 2004.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Editora Record, Rio de Janeiro, 1998.
GOMES, Nilma Lino. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural? Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n21/n21a03 Acesso em: 02/02/2014.
MACEDO, Márcio José. “Quero uma nega de cabelo duro”. São Paulo: Disponível em: www.afirma.inf.br, 23/09/2004. Acesso em: 21/11/2012.
MAIA, Rita. O Prazer da Militância: a ética estética da “negritude ilê”. In: Diálogos & Ciência – Revista da Rede de Ensino FTC. Ano V, n.11, set. 2007. Disponível em: http://www.ftc.br/dialogos
RABELO, Danilo. Rastafari: Identidade e Hibridismo Cultural na Jamaica, 1930-1981. Dissertação de Doutorado em História na UnB. Disponível em: http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/6447/1/2006_Danilo%20Rabelo.pdf
SANSONE, Lívio. Negritude sem etnicidade: o local e o global nas relações raciais e na produção cultural negra do Brasil. Salvador: Edufba; Pallas, 2007
Referência Cinematográfica
A NEGAÇÃO DO BRASIL. Direção de Joel Zito Araújo. Produção de Casa de Criação. Brasil, 2000.



[1] FERREIRA, Ricardo Franklin. Afro-descendente: identidade em construção. São Paulo: EDUC; Rio de Janeiro: Pallas,2004. p.12
[2] IBGE. Atlas do Censo Demográfico. 2010. Disponível em: www.ibge.gov.br
[3] 43,1% se declarou parda; 7,6% se declarou preta; 1% se declarou amarela; e 0,4% se declarou indígena.
[4] FERREIRA, Op. Cit., p. 12
[5] SANSONE, Lívio. Negritude sem etnicidade: o local e o global nas relações raciais e na produção cultural negra do Brasil. Salvador: Edufba; Pallas, 2007. p.11
[6] FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Editora Record, Rio de Janeiro, 1998.
[7] SANSONE, Op. Cit., p. 11
[8] FERREIRA, Op. Cit., p.18
[9] A NEGAÇÃO DO BRASIL. Direção de Joel Zito Araújo. Produção de Casa de Criação. Brasil, 2000.

[10] FERREIRA, Op. Cit., p. 18
[11] Ibidem, p.18
[12] SANSONE, Op. Cit.,,p.19
[13] Ibidem, p.21
[14] Ibidem,p .21
[15] FERREIRA, Op. Cit., p.19
[16] GOMES, Nilma Lino. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural? Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n21/n21a03 Acesso em: 02/02/2014.
[17] SANSONE, Op. Cit., p. 23
[18] Ibidem, p. 24
[19] FERREIRA, Op. Cit., p. 20
[20] SANSONE, Op. Cit., p. 25
[21] Meu Cabelo Duro é assim. In: 13 - Chiclete com Banana. BMG – Ariola, 1994. Composição: Bell Marques/ Wadinho Marques/ Paulinho Camafêu.  
[22] Nega do cabelo duro. In: Anjos do Inferno. Columbia, 1942. Composição: Rubens Soares/David Nasser. 
[23] GOMES, Nilma Lino. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural? Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n21/n21a03 Acesso em: 02/02/2014.
[24] Ibidem.
[25] Ibidem.
[26] AMÉRICO, Marcia Cristina. Discutindo educação, Identidade, auto-estima e responsabilidade social com  mulheres negras. Disponível em: http://www.unimep.br/phpg/mostraacademica/anais/7mostra/5/116.pdf Acesso em: 01/02/2014
[27] Ibidem.
[28] COUTINHO, Cassi Ladi Reis. Estética Negra: o jornal como fonte de pesquisa. Disponível em: http://94.23.146.173/ficheros/89c5b2607b44161368ab4cda36b2a789.pdf. Acesso em: 01/02/2014
[29] Ibidem.
[30] RABELO, Danilo. Rastafari: Identidade e Hibridismo Cultural na Jamaica, 1930-1981. Dissertação de Doutorado em História na UnB. Disponível em: http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/6447/1/2006_Danilo%20Rabelo.pdf
[31] MAIA, Rita. O Prazer da Militância: a ética estética da “negritude ilê”. In: Diálogos & Ciência – Revista da Rede de Ensino FTC. Ano V, n.11, set. 2007. Disponível em: http://www.ftc.br/dialogos
[32] Ibidem.
[33] MACEDO, Márcio José. “Quero uma nega de cabelo duro”. São Paulo: Disponível em: www.afirma.inf.br, 23/09/2004. Acesso em: 21/11/2012. 


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