sábado, 4 de janeiro de 2014


Por Rafael Oliveira
O filme “Xingú”, dirigido por Cao Hamburger, tem como objetivo demonstrar o processo de criação do Parque Nacional do Xingú, dando ênfase na história dos irmãos Villas-Boas e no processo de aproximação aos índios, além dos entraves políticos e sociais do mesmo.
            Durante o Estado Novo, Getúlio Vargas visando propiciar a integração nacional, deu início a chamada Marcha para Oeste. De acordo com o filme, tal Marcha tinha como objetivo penetrar o Brasil central, até então desconhecido, com a finalidade de abrir campos de pousos, fazer reconhecimento do ambiente e tomar posse da região. De acordo com a autora Vânia Moreira, “a Marcha para Oeste pode ser definida como uma política de colonização do meio-oeste, então considerado um dos ‘vazios demográficos’ do território nacional.”[1] Ainda segundo a autora, os objetivos da Marcha para Oeste eram claros:

combater a formação de latifúndios nas fronteiras agrícolas, ampliar e integração física e econômica da nação e transformar as condições de vida e de trabalho da população pobre do campo, tornando-os pequenos produtores e proprietários rurais com capacidade de consumo de bens industriais.[2]

                Durante a Marcha, os seus integrantes, vulgos “peões”, encontraram várias tribos indígenas no território que, para o governo, deveria estar desocupado. Podemos perceber no filme, como essa relação entre os indígenas e os peões, a princípio, foi conflituosa. Para os índios, os brancos eram invasores de seus territórios, enquanto para os brancos, os índios eram selvagens. Com o tempo, foi ocorrendo a aproximação entre ambos os grupos, muito devido aos irmãos Villas-Boas. O contato inicial com as tribos, na maioria das vezes era feita via entrega de presentes, miçangas e utensílios, onde os integrantes da expedição demonstravam suas boas intenções na aproximação aos indígenas. Algumas tribos tinham maior abertura para o contato, visto que muitas já haviam sido contactadas anteriormente, enquanto outras tinham maior dificuldade nesse processo de início de relação. Essas últimas, vistas como tribos hostis e violentas, em sua maioria já haviam tido contatos ruins com os brancos no passado. Garfield Seth nos diz que, no caso dos Xavantes, eles “tinham dolorosas recordações da dominação branca.”[3] O contato com os Xavantes foi o mais complicado, dependendo da ajuda de outras tribos indígenas para ser efetivado, e com saldo de uma equipe do SPI morta.
            O Estado Novo via no indígena a gênese do brasileiro e da nação. Nesse período há a exaltação dos índios, colocados em pedestais pelo regime. Havia todo um discurso de nacionalização dos índios[4], de proteção aos indígenas por meio de tutela do Estado, de modo a organizá-los e civilizá-los. Souza Lima nos diz que

Pela Lei nº 5484/1928, primeira a regular a situação jurídica dos nativos sob o regime republicano, a tutela seria do Estado nacional brasileiro sobre os povos indígenas [...] (grifos no original)[5]

Os índios, além disso tudo, eram vistos como protetores das fronteiras, demarcadores do território nacional. Havia toda uma propaganda por parte do DIP, demonstrando o caráter nacional do indígena e valorizando-o como ser integrante da nação. Garfield Seth nos diz que

Um cinegrafista do DIP acompanhou Vargas [em sua visita a aldeia dos índios Karajá], filmando imagens que o regime autoritário nacionalista procurou tornar relíquias: índios vigorosos, emblemáticos da força inata dos nativos brasileiros; o “tradicionalismo” das comunidades indígenas; a camaradagem entre índios e brancos; a bonomia do presidente, epítome do homem cordial brasileiro; o longo braço do Estado estendendo-se ao sertão para dar lhe assistência.[6]

Vários fatores fizeram com que os indígenas entrassem em cena na política nacional: o esforço do Estado Novo para consolidação do poder e redefinição do território nacional, as preocupações das elites quando as origens da nação, além da composição social da época[7], fazendo com que o Estado Novo buscasse nos índios a identidade e a essência nacional.
Um ponto importante no filme, é a demonstração das diferentes tribos indígenas, com costumes, culturas, crenças e valores distintos. Os irmãos Villas-Boas lutavam pela preservação dos mesmos. Porém, era tendência do Estado, tanto que os propagandistas do Estado Novo não faziam distinções entre as diversas tribos, e, até hoje, há a generalização de todas essas tribos quanto uma única classe de índios. Gersem Baniwa, diz que a diversidade é tamanha que há diferença até entre tribos do mesmo gênero, por exemplo, a Guarani, que existe em três países diferentes.[8]
O SPI foi criado com a função de proteger os indígenas e propiciar o contato e a civilização dos mesmos, transformando-os em trabalhadores nacionais[9], tanto que seu nome original era Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais.[10] Souza Lima critica o seu modo operandi dizendo que o SPI ao invés de proteger, explorou os indígenas, e foi alvo de bastante corrupção, tendo que ter suas atividades encerradas em 1967, sendo substituído pela FUNAI.
O território indígena sempre foi alvo de cobiça. Com a Marcha para o Oeste, boa parte dos ruralistas tentavam tomar as terras dos índios para transformá-las em latifúndio. Há uma passagem no filme em que uma tribo é massacrada com esse intuito. O filme demonstra bem o problema político gerado ao não considerar os índios como cidadãos, pois governadores davam a concessão de terras indígenas para proprietários rurais e latifundiários como se as mesmas não fossem ocupadas. José de Souza Martins nos diz que Vargas não quis ou não pode enfrentar os grandes proprietários de terras, criando em seu governo a política de não-contrariamento aos proprietários rurais[11], política essa que vigora até hoje em dia nos governos federais.
Nesse contexto surge a luta pela criação de um território onde os indígenas pudessem viver em paz, sem sofrer ameaças por parte dos homens brancos. Outro fator que fez emergir essa necessidade foi a criação de Brasília por Juscelino, e seu plano de Metas no qual pretendia cortar o país com estradas.[12] Depois de muita luta por parte dos irmãos Villas-Boas, foi criado o Parque Nacional do Xingú, local onde várias tribos indígenas poderiam conviver sem se preocupar. O parque sofreu resistência, de acordo com o filme, de ruralistas, políticos, e de alguns índios, que não queriam sair de seus territórios, onde seus ancestrais viveram, e ir para o Xingú. Há um momento crítico no filme, quando da criação da Transamazônica, estrada que passaria dentro de uma tribo indígena não-contactada, o que fez com que vários embates políticos fossem travados sobre a questão.

O Parque do Xingú sofre hoje em dia com a pressão da bancada ruralista e dos latifundiários que desejam a abertura de suas terras para o plantio e o sufocam invadindo suas fronteiras.







Referências Bibliográficas

BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Entrevista com Gersem José dos Santos Luciano – Gersem Baniwa. Revista História Hoje, v. 1, no 2, p. 127-148 – 2012.
LIMA, Antonio Carlos de Souza. Nacionalização das fronteiras: o SPI como parte do Ministério da Guerra. In: Um grande cerco de paz, Rio de Janeiro, Vozes, 1995, pp. 266-285.
________________. Reconsiderando poder tutelar e formação do Estado no Brasil: notas a partir da criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais. In: FREIRE, Carlos Augusto da Rocha (org.). Memória do SPI. Rio de Janeiro: Museu do Índio/FUNAI, 2011.
MARTINS, José de Souza. A aliança entre capital e propriedade da terra no Brasil: a aliança do atraso. In: O poder do atraso. São Paulo: HUCITEC, 1994, p. 72.
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Os anos JK: industrialização e modelo oligárquico de desenvolvimento rural. In: FEREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O tempo da experiência democrática – da democracia de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
SETH, Garfield. As raízes de uma planta que hoje é o Brasil: os índios e o Estado nação na era Vargas. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 20, nº 39, 2000.

Referência Cinematográfica

XINGÚ. Direção de Cao Hambúrguer. Produção de Fernando Meirelles. Tocantins: 02 filmes, 2012.

Imagens

Capa do Filme: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/pt/c/c2/Xingu_(filme).jpg
Contato com índio: http://img.socioambiental.org/d/237222-1/xavante_2.jpg
Xingu 50 anos:                                    http://3.bp.blogspot.com/SM4brx6q8Y/ThMNb4xyqXI/AAAAAAAAGV0/PtFrsCoMlmU/s1600/xingu50anos.png




[1] MOREIRA, Vânia Maria Losada. Os anos JK: industrialização e modelo oligárquico de desenvolvimento rural. In: FEREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O tempo da experiência democrática – da democracia de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 185
[2] Idem, p. 186.
[3] SETH, Garfield. As raízes de uma planta que hoje é o Brasil: os índios e o Estado nação na era Vargas. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 20, nº 39, p. 14, 2000.
[4] Cf. LIMA, Antonio Carlos de Souza. Nacionalização das fronteiras: o SPI como parte do Ministério da Guerra. In: Um grande cerco de paz, Rio de Janeiro, Vozes, 1995, pp. 266-285.
[5] LIMA, Antonio Carlos de Souza. Reconsiderando poder tutelar e formação do Estado no Brasil: notas a partir da criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais. In: FREIRE, Carlos Augusto da Rocha (org.). Memória do SPI. Rio de Janeiro: Museu do Índio/FUNAI, 2011, p. 203.
[6] SETH, Garfield. Op. cit. p. 3
[7] Idem.
[8] Cf. BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Entrevista com Gersem José dos Santos Luciano – Gersem Baniwa. Revista História Hoje, v. 1, no 2, p. 127-148 – 2012.
[9] LIMA, Antonio Carlos de Souza. Reconsiderando poder tutelar e formação do Estado no Brasil: notas a partir da criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais. In: FREIRE, Carlos Augusto da Rocha (org.). Memória do SPI. Rio de Janeiro: Museu do Índio/FUNAI, 2011, p. 203.
[10] Idem.
[11] MARTINS, José de Souza. A aliança entre capital e propriedade da terra no Brasil: a aliança do atraso. In: O poder do atraso. São Paulo: HUCITEC, 1994, p. 72.
[12] Cf. MOREIRA, Vânia Maria Losada.op. cit.

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