Por
Tiago Oliveira Azevedo
Civitella in Val di Chiana |
Em
sua obra, Portelli começa expondo relatos de sobreviventes de um massacre em
uma pequena cidadezinha da Itália em 29 de junho de 1944.Tudo indica que essa
retaliação foi decorrente da morte de três soldados alemães por membros da
Resistência (partisans), no pequeno
vilarejo de Civitella Val diChiana, em 18 de junho de 1944.
Para
a memória oficial da Resistência, a culpa do massacre é dos alemães, enquanto
sobreviventes do massacre culpam a própria Resistência pelo triste episódio
ocorrido naquela cidade. Esse acontecimento segundo Giovanni Contini gerou o
que ele denota de “memória dividida”.
Testemunha
do massacre, o padre Daniele Tiezzi, acha que essa mobilização da Resistência,
o ataque que culminou na morte de três soldados alemães, foi um ato
irresponsável e que pode ter contribuído (de forma direta ou indireta)para a
retaliação nazista que culminou na matança. Em seu ângulo de vista, os membros
da Resistência não eram muito organizados e nem politizados, assim para o
padre, a ação dentro dos muros do povoado só teria piorado as coisas, pois toda
população da pequena cidade foi envolvida no conflito sem que a Resistência
pudesse defendê-la de uma iminente retaliação nazista. Mas Tiezzitambém
enfatiza que quem puxou o gatilho foram os alemães e que os atos irresponsáveis
dos membros da Resistência não poderiam isentar de culpa maior os militares nazistas
envolvidos neste triste e histórico episódio.
Para
Portelli essas duas memórias, da Resistência e da população de Civitella,
entraram em choque pelo fato da população entender as celebrações da
Resistência uma afronta às vítimas do massacre. Em 1994, em uma tentativa de
reparar a memória da Resistência, foi criada a conferência internacional, In
Memorian: por uma Memória Européia dos Crimes Nazistas, coordenada por
acadêmicos com tendências esquerdistas. Segundo Portelli:
Essa reparação,
porém, teve lugar num contexto histórico ambíguo, no qual a esquerda, incerta
quanto a seus motivos e precavida quanto a qualquer tipo de ideologia, muito
frequentemente adota, sem questionar, os motivos e as ideologias de terceiros,
inclusive de seus antigos adversários. (p. 106.).
Portelli
reforça que ao se tratar de memória dividida, a tarefa do historiador é ser
crítico na análise dos fatos mantendo o respeito às pessoas envolvidas na
situação. Em suas palavras ele explica: “Na verdade, estamos lidando com uma
multiplicidade de memórias fragmentadas e internamente divididas, todas de uma
forma ou de outra, ideologicamente e culturalmente mediadas.” (p. 106). Assim, a
memória sofre alterações tanto pelos relatos dos membros da Resistência, quanto
pelos depoimentos da população que de certa forma culpa os partisans pelo massacre. Ademais, a dramaticidade e emoção nos
depoimentos prevaleceram sobre a análise e interpretação do ocorrido gerando assim
contradições nos depoimentos.
Essas
contradições são observadas por Clemente que explica que o modelo progressista
de pensar da Resistência não levara em consideração fatores como o luto comunal
da população, assim essa memória ignorava experiências que não seguem seus
modelos institucionais. Para Portelli o pensamento religioso, sobretudo o
pensamento católico, também não está isento de tal contradição. As narrativas
das testemunhas estão apoiadas no sentimento comunal que de certa forma são
mediados pela religiosidade e pela política. Contudo essas narrativas também
merecem apuração crítica.
Pierre
Clemente chama a atenção para o fato no qual a memória coletiva acusa membros
da Resistência de serem os causadores do massacre em Civitellaapoiados somente
em questões políticas e do senso comum de pessoas que não se preocupavam em
tomar partido contra o fascismo italiano. Ele também cita também que alguns
órgãos oficiais do Vaticano já teriam culpado a Resistência, em uma outra
ocasião, por um outro massacre nazista em que 335 civis também foram executados
na cidade de Roma em retaliação a morte de 32 soldados alemães. Para ele é uma
falha da historiografia da Resistência nunca ter levado em consideração tal
senso comum, apoiado pelo fascismo,que manchou aimagemdos partisansna arena política atual.
Os
depoimentos, tanto dos sobreviventes do massacre, quanto dos membros da
Resistência, segundo o autor, também sofrem modificações com o decorrer do tempo.
Nos relatos colhidos dos sobreviventes de Civitella, em um primeiro momento, esses
não culpavam os membros da Resistência de forma aberta e direta. Contudo, meio
século mais tarde, nota-se que esses relatos foram se modificando e observa-se também
que o sentimento de culpa dos partisansno
massacre foi tomando proporções cada vez maiores nesses relatos coletivos.
Assim, fica explícito que o repúdio contra os alemães colhidos nos depoimentos
das testemunhas em 1946, dão lugar, posteriormente, a narrativas carregadas de
mágoas contra a Resistência nos depoimentos recolhidos dos sobreviventes em
1994 .
Segundo
Portelli:
Vários são os
fatores responsáveis por essas mudanças. As testemunhas talvez relutassem em
criticar os membros da Resistência no período imediato no pós-guerra, quando
estes gozavam de prestígios e de certo poder político; os abusos cometidos
pelos membros da Resistência após a guerra, para “punir” pessoas respeitadas
pela comunidade e que não haviam sido mais fascistas do que as demais,
acentuaram a hostilidade do povo de Civitella; a onda de julgamento dos membros
da Resistência, as controvérsias acerca da responsabilidade por Fossas
Ardeatinas e a consolidação do senso comum já citado podem ter conferido ao
ressentimento dos sobreviventes um aparato negativo e ideológico que à época do
depoimento anterior ainda não tomara forma. (p. 110.).
Inocência
Os
relatos dos sobreviventes de Civitellaquase sempre se convergem na antítese que
figura a passagem da calmaria para caos. É notório nesses relatos que o ponto
de partida para o caos foi justamente a morte dos soldados alemães e não o
próprio massacre cometido por eles. Segundo os sobreviventes, até então todos
viviam na calmaria do vilarejo que, mesmo próximo ao campo de batalha,
proporcionava a população uma vida tranquila e sem infortúnios de guerra. Sobre
os soldados alemães um sobrevivente relatou que: “[...] às vezes, chegavam a
entrar nas casas para pedir uma bebida ou algo assim, mas nunca nos incomodavam”.
(p. 112).Calamandrei e Cappelletto nesse mesmo parágrafo chamam essas
representações de “paraíso perdido” e “era da inocência”.
Essas
referências -- paraíso e inocência -- segundo Portelli são representações
estranhas ao se tratar de um povoado sobre ocupação nazista e que é necessário
relacioná-las com os fatos. Contudo, as memórias dos sobreviventes de Civitella
são carregadas de recordações puras que são moldadas pela alegria da
adolescência das testemunhas (muito jovens naqueles dias que antecederam o
massacre) e muitas vezes essa pureza fixada na memóriadeles ainda é mantida no
discurso oral,sem sofrer alterações quando narrada anos mais tarde pelas
testemunhas. Enfim, esses relatos são imutáveise com o decorrer do tempo
influenciam na ocultação das ações mais graves cometidas pelos soldados alemães
naquele contexto de guerra.
Portelli
observa queCivitella era uma cidade elitista, separada da zona rural por muros,
assim não mantinha relações com camponeses. Sua população também não conhecia
as articulações territoriais e as mobilizações de classes. Nota-se que já havia
uma antipatia por parte dos moradores da pequena cidade contra os trabalhadores
e camponeses (classe que integravam o corpo da Resistência) quando estes
começaram a andar pela cidade em um contexto pré-guerra. Segundo o autor: “A
raiva contra os membros da Resistência pela matança irresponsável dos alemães
dentro dos muros do povoado também comporta o sentimento de invasão do espaço
do povoado pelas classes inferiores do campo". (p. 114.). Portelli ainda
ressalta que:
Existe,
portanto, um duplo deslocamento, temporal e espacial. No espacial, os invasores
são os membros da Resistência, ao invés dos alemães. No temporal, a história
não tem início com a guerra, ou mesmo com a primeira vítima local dos alemães,
mas só com a primeira reação com os membros da Resistência. (p. 114.).
Não que os
sobreviventes neguem que as incursões e as lutas da Resistênciacontribuíram
para o renascimento da Itália no pós-guerra, observasse que esse ressentimento
é direcionado somente para a Resistência local, por todos esses fatores
políticos e ideológicos apresentados pelo autor. É o que Portelli chama de “não
no meu quintal” expressão muito usada pelo senso comum. Contudo, em um balanço
geral dos fatos, não se pode negar que a Resistência tenha contribuído de forma
ativa para a libertação da Itália e que culpa-los pelas atrocidades do massacre
é simplismo quando não se leva em consideração os outros vários fatores que
estão ocultados nas entrelinhas das representações e relatos dos sobreviventes
de Civitella.
Mito
e política
Fatores religiosos
também são encontrados nos depoimentos dos sobreviventes de Civitella. Segundo o
depoimento de uma sobrevivente do massacre, um padre da cidade teria se
oferecido aos nazistas para morrer no lugar do povo em um ato de martírio
cristão.
Relatos inerentes à
memória coletivatambém narram que soldados alemãesteriam se negado aexecutar moradores
do vilarejo naquela manhã de 20 de junho, dia da retaliação, e queteriam sido
mortos por seus oficiais por desobedecerem à ordem. Ainda segundo relatos do
Padre Enrico Biagini, ele teria perdoado anos depois,dois alemães, sendo um
soldado da divisão militar alemã, que o procuraram e alegavam arrependimento de
ter participado do massacre de 1944 no vilarejo. Em suas palavras o Padre
Biagini relata: “Sou um dos alemães que aqui estiveram para retaliação naquele
dia. Diga ao povo deste povoado, padre, que éramos muito jovens e que Hitler
envenenou nossa juventude. Peço perdão para todos”. (p. 120.).
Portelli questiona o
padre por não ter pedido aos visitantes alemães seus nomes e endereços ou a divisão
militar a qual estavam submissos. O autor ainda levanta a questão de que esse
ato do“perdão” pode ter origem no mito cristão que consiste em perdoar o inimigo.
O que realmente surpreende Portelli é que esse perdão comunal ainda não teria
sido consumado aos partisians. Em
suas palavras sobre o não perdão comunal aos membros da Resistência Portelli
explica: “[...] os alemães se arrependeram, os membros da resistência não.
Dessa forma Civitella pode manter sua imagem de comunidade cristã, quanto seu
ressentimento contra os membros da resistência” (p.122.).
As origens dos mitos
também são questionáveis segundo o autor e sempre estãorelacionadas às
tragédias que ceifam vidas inocentes. Mitos conhecidos por toda à Europa como o
mito do “bom alemão” são apoiados em contos folclóricos que por muitas vezes
são inspirados nos evangelhos apócrifos.
Nuto Revelli, historiador e líder a Resistência, exemplifica essas
ambiguidades em torno dos significados dos mitos, selecionando o mito de um
soldado nazista, bem simpático, que cavalgava pelos campos italianos distribuindo
doces para as crianças. Essa imagem pode ser entendida também pela a lógica de
mais um soldado nazista patrulhando os campos da região, seguindo às ordens bestiais
e mal intencionadas de seuFührer. Assim,
Nuto Revelli tenta explicar que os mitos podem ocultar significantes
importantes para a compreensão dos fatos.
Em última análise às
memórias divididas, comunal dos sobreviventes do massacre einstitucional da
Resistência, devem ser compreendidas pelas subjetividades intrínsecas aos
relatos dos indivíduos envolvidos no massacre, pois no caso de Civitella, o
discurso de ambas as partes (partisianse
moradores) são carregados por sentimentos de dor e de luto, mediados por
ideologias, linguagem, senso comum e explicações institucionais. O conceito
“memória dividida” é plural e deve ser estudado e reconstruído de forma crítica
com o intuito de eliminar essas dicotomias que se estendem por gerações,
possibilitando assim para o estudioso maior entendimento dessas múltiplas representações.
Referências
Bibliográficas:
PORTELLI,
Alessandro. O massacre de Civittela Val
diChiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso
comum. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína (orgs.). Usos &
abusos da história oral. 1a edição 1996. Rio de Janeiro: FGV, 2001, p. 103-130.
Site da imagem: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Civitella_in_Val_di_Chiana,_piazza_principale.jpg
0 comentários:
Postar um comentário