sábado, 22 de março de 2014

Por Tiago Oliveira Azevedo

Civitella in Val di Chiana
Em sua obra, Portelli começa expondo relatos de sobreviventes de um massacre em uma pequena cidadezinha da Itália em 29 de junho de 1944.Tudo indica que essa retaliação foi decorrente da morte de três soldados alemães por membros da Resistência (partisans), no pequeno vilarejo de Civitella Val diChiana, em 18 de junho de 1944.
Para a memória oficial da Resistência, a culpa do massacre é dos alemães, enquanto sobreviventes do massacre culpam a própria Resistência pelo triste episódio ocorrido naquela cidade. Esse acontecimento segundo Giovanni Contini gerou o que ele denota de “memória dividida”.
Testemunha do massacre, o padre Daniele Tiezzi, acha que essa mobilização da Resistência, o ataque que culminou na morte de três soldados alemães, foi um ato irresponsável e que pode ter contribuído (de forma direta ou indireta)para a retaliação nazista que culminou na matança. Em seu ângulo de vista, os membros da Resistência não eram muito organizados e nem politizados, assim para o padre, a ação dentro dos muros do povoado só teria piorado as coisas, pois toda população da pequena cidade foi envolvida no conflito sem que a Resistência pudesse defendê-la de uma iminente retaliação nazista. Mas Tiezzitambém enfatiza que quem puxou o gatilho foram os alemães e que os atos irresponsáveis dos membros da Resistência não poderiam isentar de culpa maior os militares nazistas envolvidos neste triste e histórico episódio.
Para Portelli essas duas memórias, da Resistência e da população de Civitella, entraram em choque pelo fato da população entender as celebrações da Resistência uma afronta às vítimas do massacre. Em 1994, em uma tentativa de reparar a memória da Resistência, foi criada a conferência internacional, In Memorian: por uma Memória Européia dos Crimes Nazistas, coordenada por acadêmicos com tendências esquerdistas. Segundo Portelli:

Essa reparação, porém, teve lugar num contexto histórico ambíguo, no qual a esquerda, incerta quanto a seus motivos e precavida quanto a qualquer tipo de ideologia, muito frequentemente adota, sem questionar, os motivos e as ideologias de terceiros, inclusive de seus antigos adversários. (p. 106.).
           
Portelli reforça que ao se tratar de memória dividida, a tarefa do historiador é ser crítico na análise dos fatos mantendo o respeito às pessoas envolvidas na situação. Em suas palavras ele explica: “Na verdade, estamos lidando com uma multiplicidade de memórias fragmentadas e internamente divididas, todas de uma forma ou de outra, ideologicamente e culturalmente mediadas.” (p. 106). Assim, a memória sofre alterações tanto pelos relatos dos membros da Resistência, quanto pelos depoimentos da população que de certa forma culpa os partisans pelo massacre. Ademais, a dramaticidade e emoção nos depoimentos prevaleceram sobre a análise e interpretação do ocorrido gerando assim contradições nos depoimentos.
Essas contradições são observadas por Clemente que explica que o modelo progressista de pensar da Resistência não levara em consideração fatores como o luto comunal da população, assim essa memória ignorava experiências que não seguem seus modelos institucionais. Para Portelli o pensamento religioso, sobretudo o pensamento católico, também não está isento de tal contradição. As narrativas das testemunhas estão apoiadas no sentimento comunal que de certa forma são mediados pela religiosidade e pela política. Contudo essas narrativas também merecem apuração crítica. 
Pierre Clemente chama a atenção para o fato no qual a memória coletiva acusa membros da Resistência de serem os causadores do massacre em Civitellaapoiados somente em questões políticas e do senso comum de pessoas que não se preocupavam em tomar partido contra o fascismo italiano. Ele também cita também que alguns órgãos oficiais do Vaticano já teriam culpado a Resistência, em uma outra ocasião, por um outro massacre nazista em que 335 civis também foram executados na cidade de Roma em retaliação a morte de 32 soldados alemães. Para ele é uma falha da historiografia da Resistência nunca ter levado em consideração tal senso comum, apoiado pelo fascismo,que manchou aimagemdos partisansna arena política atual.
Os depoimentos, tanto dos sobreviventes do massacre, quanto dos membros da Resistência, segundo o autor, também sofrem modificações com o decorrer do tempo. Nos relatos colhidos dos sobreviventes de Civitella, em um primeiro momento, esses não culpavam os membros da Resistência de forma aberta e direta. Contudo, meio século mais tarde, nota-se que esses relatos foram se modificando e observa-se também que o sentimento de culpa dos partisansno massacre foi tomando proporções cada vez maiores nesses relatos coletivos. Assim, fica explícito que o repúdio contra os alemães colhidos nos depoimentos das testemunhas em 1946, dão lugar, posteriormente, a narrativas carregadas de mágoas contra a Resistência nos depoimentos recolhidos dos sobreviventes em 1994 .
Segundo Portelli:
Vários são os fatores responsáveis por essas mudanças. As testemunhas talvez relutassem em criticar os membros da Resistência no período imediato no pós-guerra, quando estes gozavam de prestígios e de certo poder político; os abusos cometidos pelos membros da Resistência após a guerra, para “punir” pessoas respeitadas pela comunidade e que não haviam sido mais fascistas do que as demais, acentuaram a hostilidade do povo de Civitella; a onda de julgamento dos membros da Resistência, as controvérsias acerca da responsabilidade por Fossas Ardeatinas e a consolidação do senso comum já citado podem ter conferido ao ressentimento dos sobreviventes um aparato negativo e ideológico que à época do depoimento anterior ainda não tomara forma. (p. 110.).

Inocência

Os relatos dos sobreviventes de Civitellaquase sempre se convergem na antítese que figura a passagem da calmaria para caos. É notório nesses relatos que o ponto de partida para o caos foi justamente a morte dos soldados alemães e não o próprio massacre cometido por eles. Segundo os sobreviventes, até então todos viviam na calmaria do vilarejo que, mesmo próximo ao campo de batalha, proporcionava a população uma vida tranquila e sem infortúnios de guerra. Sobre os soldados alemães um sobrevivente relatou que: “[...] às vezes, chegavam a entrar nas casas para pedir uma bebida ou algo assim, mas nunca nos incomodavam”. (p. 112).Calamandrei e Cappelletto nesse mesmo parágrafo chamam essas representações de “paraíso perdido” e “era da inocência”.
Essas referências -- paraíso e inocência -- segundo Portelli são representações estranhas ao se tratar de um povoado sobre ocupação nazista e que é necessário relacioná-las com os fatos. Contudo, as memórias dos sobreviventes de Civitella são carregadas de recordações puras que são moldadas pela alegria da adolescência das testemunhas (muito jovens naqueles dias que antecederam o massacre) e muitas vezes essa pureza fixada na memóriadeles ainda é mantida no discurso oral,sem sofrer alterações quando narrada anos mais tarde pelas testemunhas. Enfim, esses relatos são imutáveise com o decorrer do tempo influenciam na ocultação das ações mais graves cometidas pelos soldados alemães naquele contexto de guerra.
Portelli observa queCivitella era uma cidade elitista, separada da zona rural por muros, assim não mantinha relações com camponeses. Sua população também não conhecia as articulações territoriais e as mobilizações de classes. Nota-se que já havia uma antipatia por parte dos moradores da pequena cidade contra os trabalhadores e camponeses (classe que integravam o corpo da Resistência) quando estes começaram a andar pela cidade em um contexto pré-guerra. Segundo o autor: “A raiva contra os membros da Resistência pela matança irresponsável dos alemães dentro dos muros do povoado também comporta o sentimento de invasão do espaço do povoado pelas classes inferiores do campo". (p. 114.). Portelli ainda ressalta que:

Existe, portanto, um duplo deslocamento, temporal e espacial. No espacial, os invasores são os membros da Resistência, ao invés dos alemães. No temporal, a história não tem início com a guerra, ou mesmo com a primeira vítima local dos alemães, mas só com a primeira reação com os membros da Resistência. (p. 114.).

Não que os sobreviventes neguem que as incursões e as lutas da Resistênciacontribuíram para o renascimento da Itália no pós-guerra, observasse que esse ressentimento é direcionado somente para a Resistência local, por todos esses fatores políticos e ideológicos apresentados pelo autor. É o que Portelli chama de “não no meu quintal” expressão muito usada pelo senso comum. Contudo, em um balanço geral dos fatos, não se pode negar que a Resistência tenha contribuído de forma ativa para a libertação da Itália e que culpa-los pelas atrocidades do massacre é simplismo quando não se leva em consideração os outros vários fatores que estão ocultados nas entrelinhas das representações e relatos dos sobreviventes de Civitella.

Mito e política

Fatores religiosos também são encontrados nos depoimentos dos sobreviventes de Civitella. Segundo o depoimento de uma sobrevivente do massacre, um padre da cidade teria se oferecido aos nazistas para morrer no lugar do povo em um ato de martírio cristão.
Relatos inerentes à memória coletivatambém narram que soldados alemãesteriam se negado aexecutar moradores do vilarejo naquela manhã de 20 de junho, dia da retaliação, e queteriam sido mortos por seus oficiais por desobedecerem à ordem. Ainda segundo relatos do Padre Enrico Biagini, ele teria perdoado anos depois,dois alemães, sendo um soldado da divisão militar alemã, que o procuraram e alegavam arrependimento de ter participado do massacre de 1944 no vilarejo. Em suas palavras o Padre Biagini relata: “Sou um dos alemães que aqui estiveram para retaliação naquele dia. Diga ao povo deste povoado, padre, que éramos muito jovens e que Hitler envenenou nossa juventude. Peço perdão para todos”. (p. 120.).
Portelli questiona o padre por não ter pedido aos visitantes alemães seus nomes e endereços ou a divisão militar a qual estavam submissos. O autor ainda levanta a questão de que esse ato do“perdão” pode ter origem no mito cristão que consiste em perdoar o inimigo. O que realmente surpreende Portelli é que esse perdão comunal ainda não teria sido consumado aos partisians. Em suas palavras sobre o não perdão comunal aos membros da Resistência Portelli explica: “[...] os alemães se arrependeram, os membros da resistência não. Dessa forma Civitella pode manter sua imagem de comunidade cristã, quanto seu ressentimento contra os membros da resistência” (p.122.).
As origens dos mitos também são questionáveis segundo o autor e sempre estãorelacionadas às tragédias que ceifam vidas inocentes. Mitos conhecidos por toda à Europa como o mito do “bom alemão” são apoiados em contos folclóricos que por muitas vezes são inspirados nos evangelhos apócrifos.  Nuto Revelli, historiador e líder a Resistência, exemplifica essas ambiguidades em torno dos significados dos mitos, selecionando o mito de um soldado nazista, bem simpático, que cavalgava pelos campos italianos distribuindo doces para as crianças. Essa imagem pode ser entendida também pela a lógica de mais um soldado nazista patrulhando os campos da região, seguindo às ordens bestiais e mal intencionadas de seuFührer. Assim, Nuto Revelli tenta explicar que os mitos podem ocultar significantes importantes para a compreensão dos fatos.
Em última análise às memórias divididas, comunal dos sobreviventes do massacre einstitucional da Resistência, devem ser compreendidas pelas subjetividades intrínsecas aos relatos dos indivíduos envolvidos no massacre, pois no caso de Civitella, o discurso de ambas as partes (partisianse moradores) são carregados por sentimentos de dor e de luto, mediados por ideologias, linguagem, senso comum e explicações institucionais. O conceito “memória dividida” é plural e deve ser estudado e reconstruído de forma crítica com o intuito de eliminar essas dicotomias que se estendem por gerações, possibilitando assim para o estudioso maior entendimento dessas múltiplas representações.

Referências Bibliográficas:

PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civittela Val diChiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína (orgs.). Usos & abusos da história oral. 1a edição 1996. Rio de Janeiro: FGV, 2001, p. 103-130.

Site da imagem: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Civitella_in_Val_di_Chiana,_piazza_principale.jpg

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