segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Por Nathalia Nogueira Bastos e Soraia Ramos da Silva


Lundu retratado por Earle, Rio de Janeiro, século XIX. Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/retrato/batuques-em-lisboa

Segundo Marcos Napolitano em seu livro, História & Música, nos últimos anos tem sido comum a utilização da canção como fonte para a pesquisa histórica, tanto para recursos didáticos quanto para o ensino de humanidades. No Brasil, a canção ocupa um lugar especial na produção cultural e através de suas matizes contribui como um espelho para apresentar não só as mudanças sociais, mas também as nossas sociabilidades e sensibilidades coletivas. Portanto essa seria a justificativa para o uso da canção como documento e recurso didático.
Napolitano acredita ser fundamental a articulação entre “texto” e “contexto” para que a análise não seja reduzida e apresenta, o que para ele é, o grande desafio do pesquisador em música popular.

“O grande desafio de todo pesquisador em música popular é mapear as camadas de sentido embutidas numa obra musical, bem como suas formas de inserção na sociedade e na história, evitando, ao mesmo tempo, as simplificações e mecanicismos analíticos que podem deturpar a natureza polissêmica (que possui vários sentidos) e complexa de qualquer documento de natureza estética.”1

Napolitano acredita ser necessidade de todos os pesquisadores de música, compreender as diferentes manifestações e estilos musicais dentro de sua época, e cena musical na qual está inserida sem consagrar ou reproduzir hierarquias de valores herdadas ou representar seu gosto pessoal na crítica histórica.
Para compreendermos o contexto, utilizaremos a historiadora Martha Abreu, que mergulha sobre as manifestações populares que envolviam as festas do Divino Espírito Santo, desde as atitudes de devoção até as apresentações dos variados gêneros musicais e teatrais. Entre as valsas e os batuques destacavam-se os sensuais “lundus”, gênero que confundia livres e escravos, brancos e negros que possibilitava a criação de novos estilos de dança e música.
Além disso, utilizaremos as relações de gênero, como uma forma de leitura da fonte, destacando alguns discursos utilizados no início do século XX para definir a mulher. Margareth Rago entende gênero como uma categoria que não vem substituir História das Mulheres, mas sim como uma saída as necessidades de ampliação do vocabulário para conseguir “dar conta da multiplicidade das dimensões constitutivas das práticas sociais e individuais.”2 O sexo ganha outras dimensões e possibilidades de análise, afinal a construção da identidade pessoal e coletiva perpassa por ele. Mas o essencial é perceber a construção dessas diferenças sexuais, desnaturalizando as representações até então cristalizadas no social, não somente na leitura do passado, mas principalmente na construção de formas mais liberais e pacíficas de convivência no presente. Para isso é necessário a desmantelar a hierarquização dos grupos para que os iguais possam conviver respeitando as suas subjetividades.3
Os benefícios da utilização da categoria Gênero são destacados por Rago da seguinte forma. Primeiramente permitindo sexualizar as experiências humanas colocando em xeque a prática narrativa dessexualizada, embora conscientes de que o sexo faz parte das nossas experiências, raramente incorporaram o sexo na dimensão analítica. Segundo, tal categoria “permitiu nomear campos das práticas sociais e individuais que conhecemos mal, mas que intuímos de algum modo.”(RAGO – 1998) passando a perceber as diferenças entre os universos masculino e feminino não apenas por determinações biológicas e sim por experiências socio-históricas, marcadas por questões de valores, crenças, simbolismos e outros aspectos passíveis de reflexão. Terceiro, o gênero tornou-se um aliado nas análises dos aspectos da vida humana impulsionado pela questão dos problemas das fontes. 4

“Por um lado o gênero aparece como construção simbólica na qual, de fato, masculinidades e feminilidades se descolocam de homens e mulheres. Por outro, na análise concreta há um certo limite: você [Almeida] acaba associando sempre masculinidades a homens. E tenho a impressão que esse limite se relaciona com a maneira como você pensa a identidade.”5

O lundu

O lundu é um gênero musical datado do século XVIII e uma dança de natureza híbrida, criado em meio aos batuques dos escravos trazidos para o Brasil, tendo particularidades de regiões como Angola e Portugal.
Da África, o lundu herdou a base rítmica e a malemolência, tendo um aspecto lascivo representado nas umbigadas, rebolados e gestos que lembravam atos sexuais. Da Europa, o lundu aproveitou características mais ligadas para a dança como o estalar de dedos, a melodia e a harmonia além da inserção de acompanhamentos instrumentais como o bandolim. Em Portugal o lundu recebeu instrumentos de corda, porém D.Manuel a proibiu, já que considerava uma música/dança que contrariava os maus costumes.
Nos finais do século XVIII, o lundu evolui como uma forma de canção urbana, acompanhada de versos em sua maioria de cunho humorístico e lascivo tornando-se uma dança popular de salão. Durante o século XIX, o lundu se torna uma forma musical dominante, sendo o primeiro ritmo com influências africanas a ser aceito pelos brancos. Ainda nesse período irão surgir importantes compositores (Domingos Caldas Barbosa, Francisco Manuel da Silva, Laurindo Rabelo e Xisto Bahia, entre outros) desta forma musical, e mais instrumentos de corda são inseridos.
O lundu foi considerado por muitos viajantes estrangeiros como gênero de dança e música mais difundido no Brasil no século XIX, sendo muito difícil precisar suas características e significados devido a variedade de situações em que era executado ou cantada. No século XX, o lundu vai perdendo seu legado, muitos pesquisadores defendem que o lundu foi o primeiro ritmo “afro-brasileiro” em formato de canção sendo fruto de um sincretismo que originou o samba.

“Não são raras as descrições de viajantes, por todo o Império, que valorizavam esses traços, sendo frequentes as que aproximavam os lundus dos batuques de negros e escravos. O estabelecimento dos limites entre as várias danças e músicas populares sempre foi um dilema para os folcloristas que a isso se dedicaram, pois lundus, chulas e fados – também conhecidos como fandangos – muitas vezes foram descritos por viajantes estrangeiros e cronistas locais com características estilísticas e sociais muito próximas. Ora aparecem como estilo de gente do país, marcado pelo requebro de negros, mestiços, escravos ou livres pobres, ou como danças que evidenciam a influência ibérica; ora apresentam uma coreografia de roda, com saracoteios inimitáveis, passos ondulados e engraçados. À s vezes aparecem marcados pelo ritmo de palmas ou estalar dos dedos, acompanhados de violões, cavaquinhos, flautas, violas, urucungos (espécie de berimbau) e marimbas (lâminas de ferro fixadas a uma prancheta de madeira), instrumentos de evidentes traços africanos.”6

Os lundus que eram dançados e tocados em teatros, casas de diversão e circos, quase sempre eram acompanhados por piano. Apresentavam, em geral, um gênero música humorística devido o interesse de compositores de modinhas eruditas e dos músicos de teatros, em atrair mais público. Algumas publicações de lundus traziam a autoria de renomados escritores da literatura nacional, como: Gonçalves de Magalhães, Joaquim Manoel de Macedo, Castro Alves e Mello Moraes Filho.
Na primeira parte do livro Feitiço Decente- transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933) o autor Carlos Sandoni, vai trabalhar com o lundu sendo a origem do samba. Com o título “Doces lundus, para nhonhô sonhar...” o autor vai trabalhar com alguns aspectos da música de salão do século XIX, diretamente ligados ao inicio do samba; como o lundu, o maxixe, a polca-lundu entre outros. Para Sandoni a inserção no passado ajudará a compreender um universo musical e ideológico do qual o samba carioca era atribuído na sua fase inicial. O ator evidencia as diferentes designações da palavra lundu, para afirmar que o mesmo trabalhará com o lundu de salão.
Para Sandroni o aparecimento dos lundus-canção (impressos em 1830) teve um grande personagem histórico da música popular brasileira, o padre mulato Domingos Caldas Barbosa (1738-1800) sendo este considerado como introdutor do lundu e da modinha em Portugal. Segundo Sandroni os livros de mais importância sobre lundu são A modinha e o lundu do século XVIII, de Araújo e A modinha e o lundu de Bruno Kiefer. Nesses trabalhos os autores evidenciam o entrelaço do lundu e modinha, fica claro então a dificuldade de separar os dois ritmos.

O lundu uma atração nas “Três Cidras do amor”
Como Sandroni, a autora Martha Abreu também vai evidenciar a dificuldade em precisar as diferenças entre chulas, fados, modinha e o próprio lundu. A autora lembra que a origem do lundu ao final do século XVIII, na fusão de ritmos e movimentos obteve inegavelmente uma matriz popular e negra.

“Os homens e mulheres que realizavam os indefinidos e inimitáveis requebros, umbigadas e movimentos lascivos não nasceram nos ricos salões de baile; estavam na rua, reuniam-se nas festas do Divino onde seus ritmos prediletos eram apresentados como atração e divertimento.”7

Martha Abreu salienta que o lundu como outros ritmos eram marcas portuguesas, estilo de gente de um país e requebros de negros. O ritmo ao som de violas, marimbas, estalar de dedos e bater de palmas. Apresentando coreografia de roda, saracoteios, passos ondulados um tanto engraçado e variado. Através dessas colocações, a autora procurou evidenciar que eram gêneros difundidos e irreverentemente apropriados por setores populares, e que é difícil circunscrever a um único grupo étnico ou social específico.
A partir do lundu a autora procura mostrar que o ritmo de alguma forma pode ser útil para denominar e qualificar tudo o que acontecia nas barracas, como a de Teles, nas festas do Divino. Além de pesquisas em obras de folcloristas a autora utiliza-se de informações/conclusões de dois grandes pesquisadores do tema, Mário de Andrade e José Ramos Tinhorão.
Mario de Andrade defende que o lundu foi uma transformação brasileira de batuques angolanos, sendo algumas vezes acompanhado por instrumentos de corda. E numa incrível adaptação para o aristocrático piano acabou chegando aos salões. Porém não deixou de ser identificado como uma dança de pretos.
Para José Tinhorão o lundu também é considerado uma forma de canção e dança de origens derivadas das rodas de batuque dos negros africanos, tendo certo humor sendo suas primeiras aparições no século XVIII. O autor também vai falar sobre a utilização de instrumentos como o violão e a viola, nos lundu fora dos terreiros de batuque.

“[...] quando acontecia fora dos terreiros de batuque, com a viola e o violão, a influência da percussão aparecia na entonação em ritmo cadenciado e onomatopeico, ao final dos quais se acrescentava o estribilho, que traduzia a parte cantada em coro, com acompanhamento de palmas.”8

Tinhorão ainda vai fazer algumas dissociações entre lundu-canção e lundu-dança no século XIX, sendo o primeiro apresentado numa forma de estrutura declamatória com intervalos curtos, fazendo crescer o interesse de compositores cultos de modinhas eruditas e músicos teatrais. Os mesmos viam um bom casamento entre um texto engraçado com a malicia da dança, características essas que trariam oportunidade de mais público. O autor confirma e retrata a entrada do lundu em outros campos, como os salões aristocráticos.

“Tinhorão confirma, juntamente com alguns viajantes consultados, que o lundu chegou a ser tocado nos salões aristocráticos do primeiro e segundo reinados embora os seus movimentos de umbigada, a marca registrada deste gênero, segundo o pesquisador, nunca tenham sido vistos com bons olhos.”9

E acredita que ainda no início do século XIX, o lundu sem a batucada ganhou expressão nos teatros, e aproximações com outros estilos.

“Desde 1820, foi nos teatros que o lundu sem batucada encontrou grande expressão. Quando da entrada da polca europeia, em meados do século, a aproximação dos dois estilos deu maior trânsito ao lundu nos ambientes aristocráticos.”10

Para Martha Abreu a grande dificuldade, dentre os estilos populares de dança e música no Rio de Janeiro, é a tarefa de especificar as diferenças entre lundus e os batuques nas descrições dos viajantes consultados por ela.
Pela presença negra e/ou escrava além de movimentos corporais, estalar de dedos e utilização de percussão e violão eram elementos que se interlaçavam complicando o estabelecimento de uma separação nítida entre os dois ritmos.
A autora vai utilizar informações descritas por Rugendas um desenhista de uma expedição científica na década de 1820, que considerava o batuque a dança a habitual dos negros mesmo sendo introduzido o estalar de dedos se aproximando assim de definições apropriadas ao lundu. O lundu foi apontado também como uma dança negra, porém também poderia ser tocada/executada por portugueses ao som de violões por um ou mais pares.
Abreu trouxe para o seu trabalho ilustrações feitas por Rugendas em que são ilustrados o batuque e dois lundus.11 Na ilustração do lundu - ilustração 512 - segundo Abreu, o artista dá a impressão de que a dança é executada por homens e mulheres livres próximo de uma venda todos os participantes sendo “homens de cor”. Na segunda gravura de lundu – ilustração 613 - o casal principal é branco, o movimento dos dedos destaca-se e fica visível a utilização de violão, os homens e mulheres negros agora aparecem apenas na assistência.

“[...] É significativo que seja o lundu, e não o batuque o gênero visto pelos viajantes como o de maior trânsito entre diferentes segmentos sociais e éticos da cidade e suas cermanias. Ao lado das aproximações entre os gêneros de música e dança, não se pode destacar completamente uma certa hierarquia sociomusical. Nesse sentido, as imagens de Rugendas aparecem emblemáticas.”14

Martha Abreu nas palavras finais de seu livro faz uma pequena associação/comparação com o atual estágio da sociedade. A autora depois de apresentar o lundu nos séculos XIX e XX, vai fazer uma associação com outro ritmo que nos dias atuais também sofre das mesmas críticas que o lundu sofreu anteriormente.
Em 21 de outubro de 1995 o jornal do Brasil, colocou em discussão a novidade em termos musicais no Rio de Janeiro, os bailes funks no morro do Chapéu Mangueira. Em que “morados do asfalto” reclamavam do intenso barulho que os bailes provocavam. Esses moradores explicaram que queriam acabar com o funk não por causa do som, mais porque os jovens de classe média estavam se misturando com o pessoal do morro.
Abreu então faz com que possamos a partir de um estilo musical atual, no caso o funk, entender como se deu a miscigenação de um ritmo de negros/africanos com instrumentos e participação de homens brancos em territórios proibidos, como os grandes salões de festa.


O lundu como fonte

Título: A mulher é o diabo de saia.
Autoria: Desconhecida
Intérprete: Mário Pinheiro
Data da gravação: 1904-1907
Gênero musical: Lundu

A mulher é o diabo de saia

A mulher é o diabo de saia, lundu cantado por Mário Pinheiro, Rio de Janeiro...

A mulher é o diabo de saia
Para sossego devia morrer
A mulher é o diabo de saia
Para sossego devia morrer

A mulher é perversa para o homem
A mulher não devia nascer
A mulher é perversa para o homem
A mulher não devia nascer

A mulher é um ente sem alma
Em seu [ ] é todo pacato
A mulher é um ente sem alma
Em seu [ ] é todo pacato


Tem unha [ ] de arranha
A mulher só tem unhas de gato
Tem unha [ ] de arranha
A mulher só tem unhas de gato

Ouça amigos, eu dou um conselho.
E quero que seja cumprido
Ouça amigos, eu dou um conselho.
E quero que seja cumprido

Antes morra da febre amarela
Do que pensar em ser marido
Antes morra de febre amarela
Do que pensar em ser marido

Se o homem é um anjo de calça
E veio só para sofrer
Se o homem é um anjo de calça
E veio só para sofrer

Trabalha e nunca descansa
Até o momento de morrer
Trabalha e nunca descansa
Até o momento de morrer...


Na música de Mário Pinheiro, A mulher é o diabo de Saia, tem como tema geral de forma satírica a mulher em comparação com o diabo. “Quem” fala através da letra é um homem que se dirige aparentemente a outros homens. O autor da canção vai utilizar-se de associações entre a mulher é o diabo, a mulher tendo garras de gato, além de se utilizar de rimas para compor a letra.
Por não possuir conhecimentos acerca da estrutura musical e nem a partitura da canção não conseguimos visualizar informações importantes para a análise de fonte. Com o andamento rápido a canção se torna bem animada. É perceptível a utilização de dois instrumentos: o violão e o piano. O tom de voz do cantor é sempre altivo. O “clima” e a mensagem observados na letra são compatíveis, letra animada melodia rápida. Assim como vimos anteriormente, era comum a criação de músicas com temas engraçados, como forma de atrair os ouvidos da população.A partir disso podemos criar uma análise da música, a partir das relações de gênero, onde podemos encontrar uma critica satírica à mulher e uma valorização do trabalho fora de casa.
A música é datada do início do século XX (1902 de acordo com informações do Instituto Moreira Salles) e a partir de sua análise pretendemos estabelecer algumas características relacionadas ao feminino e ao masculino presentes na canção.
No livro Em Defesa da Honra a historiadora Sueann Caulfield trabalha a moralidade na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Nesse livro ela trabalha a importância da mulher na construção da moral da nação. A mulher constitui a base da honra da família, que por sua vez foi entendida como base da nação brasileira.15
Além disso, em literaturas diversas, quando a mulher é referida está sempre ligada às forças da natureza, como algo incontrolável, instável e imprevisível. Já o homem é ligado a razão e ao bom senso. Não diferente, na canção a mulher é comparada ao diabo, como se o homem estivesse a espreita de um ataque, e estive em perigo. Coloca o homem como vítima da fúria feminina e o homem, trabalhador que só quer descansar para mais um dia de trabalho. Mas estaria o autor da canção se referindo ao perigo doméstico da mulher? O perigo que o homem corre dentro de casa? Acreditamos que essa canção não está se referindo necessariamente a mulher de casa, mas sim a mulher que está começando a adentrar o espaço público. O gênero era uma privilegiada forma de distinção social.

“As garotas modernas eram culpadas não só pela astúcia e outros conhecimentos indecorosos que seus ambientes ofereciam, mas também por atividades que as livravam da disciplina familiar. […] A associação da liberdade da mulher com a desonra sexual não era totalmente nova. O termo “mulher livre”, empregado como sinônimo de “mulher pública”, significava prostituta no uso popular e jurídico desde muito antes. Isso é uma ironia, pois muitos senhores obrigavam as escravas à prostituição, antes da Abolição em 1888, e a importação de prostitutas estrangeiras era conhecida como 'tráfico de escravas brancas'”.16

A partir dessa leitura, podemos dizer que a mulher que a canção se refere é a mulher perigosa, aquela que mente, que dissimula e engana os homens trabalhadores que só desejam descansar para mais um dia de trabalho. A música é como um alerta ao homem para as artimanhas femininas que tentarão iludi-lo para casar com ele. Assim como destaca Caulfield, as músicas com batidas mais sensuais estão presente nas ruas, nas noites boêmicas da cidade. O que nos ajuda a compreender que essa música não está direcionada para a mulher dona de casa, mas sim a mulher que está na noite, na boêmia carioca.
Não é possível caracterizar o compositor da canção, já que este é desconhecido, mas podemos fazer uma breve apresentação do interprete. Mário Pinheiro foi um cantor e violonista, nascido em 1880 em Campos no Rio de Janeiro e faleceu aos 43 anos no Rio de Janeiro em janeiro de 1923. Filho de uma enfermeira cearense, estreou sua vida artística em um e logo passou a cantar no Passeio Público, geralmente acompanhando-se ao violão. Barítono, tornou-se no melhor cantor brasileiro do início do século. Em companhia de Bahiano, Cadete, Nozinho e Eduardo das Neves, formou um quadro de cantores contratados por Fred Figner da Casa Edison no Rio de Janeiro, que realizou as primeiras gravações no Brasil, iniciadas em 1902. Gravou diversas modinhas, lundus e cançonetas.
Mário possuía uma voz e dicção privilegiada e em 1909 participou da programação de inauguração do Teatro Municipal do Rio de Janeiro onde representava o personagem Tapir, na ópera Moema, de autoria de Delgado de Carvalho. Em 1910, viajou para os Estados Unidos e gravou aproximadamente 100 discos. Por volta de 1912, seguiu para a Itália onde, estudando canto, chegou a se apresentar no Teatro Scala, de Milão. Na Itália casou-se com a harpista Aída, com quem teve dois filhos. Volta para o Brasil em 1917, agora como baixo-cantante de uma companhia lírica e começa então a gravar no Odeon. A partir de 1920, sua carreira e saúde começam a declinar, com o surgimento de novos cantores e frágil saúde em 1923 falece em plena miséria.
Napolitano também destaca que é necessário compreender a recepção musical em planos multidimensionais e cruzados, revendo a premissa de se pesquisar a música isolada dos ouvintes. Porém para dar conta dessa premissa seria necessário ter outros dispositivos de pesquisa e ter acesso a outros tipos de fontes, que não coube dentro do escopo desse trabalho.
Nós tivemos um grande problema em conseguir ouvir e entender, para transcrever, a letra da música. Nós a conseguimos a canção no site do Instituto Moreira Salles, porém não tinha a letra nem a partitura disponibilizadas em versão digital online. Nem informações acerca do compositor ou da forma como ela chegou ao acervo.

Vimos que o lundu foi um ritmo datado desde o século VIII, que foi criado em meio a um sincretismo e que primeiramente considerado um ritmo de negros e depois se adentrou em grandes salões da sociedade.
Com Martha Abreu conseguimos apresentar todo o caminho percorrido pelo lundu, no Rio de Janeiro nos séculos XIX e XX, percebendo que esse era um ritmo que crescia e chamava atenção de muitos, como os folcloristas e viajantes. Os mesmos ainda sem saber separar os variados ritmos que poderíamos chamar de popular, como o lundu, o batuque, a chula, o fado, entre outros. Sendo esses ritmos sempre considerados uma música de negro. E ao final nós trás uma consideração pertinente em relação a O Que é a Música Popular? Ontem e nos dias atuais e suas intervenções/contribuições para se entender o contexto histórico de determinado tempo e lugar.
Além disso, utilizamos a fonte para compreender a sociedade através das relações de gênero, a partir da cultura popular no Rio de Janeiro. Através da música popular é possível determinar um pouco do discurso heteronormativo, misógino que tinha a mulher como um perigo a ser temido e a ser dominado. Avisando os perigos da espécie, inconstante, perigosa. Nesse caso, o alcance que a música pode alcançar, a torna como um instrumento de pesquisa muito importante para compreender o passado.

Notas:
1 - NAPOLITANO, Marcos. História & música- história cultural da música popular. Belo Horizontes: Autêntica, 2002. – Página 53.
2 - RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o gênero. In: Cadernos Pagu (11), 1998. Página 98
3 - Ibidem - Página 92
4 - RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o gênero. In: Cadernos Pagu (11), 1998. Páginas 95 – 96.
5 - CORRÊA, Mariza; PISCITELLI, Adriana. “Flores do colonialismo”. Masculinidades numa perspectiva antropológica. Entrevista com Miguel Vale de Almeida. Cadernos Pagu. 11, p201-229, 1998. Página 210.
6 - VAINFAS, Ronaldo – Verbete Lundus In: _____ Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2008.– Página 499.
7 - ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. São Paulo: Fapesp, 1999. – Página 79
8 - Ibidem – Página 83
9 - Ibidem – Páginas 83 e 84
10 - Ibidem – Página 83
11 - Ibidem – Páginas 85, 87 e 89
12 - Ibidem – Página 87
13 - Ibidem – Página 86
14 - Ibidem – Página 92.
15 - “Na prática a defesa da “moralidade civilizada” por meio das políticas urbanas - assim como a defesa da honra da família no direito – provoca conflitos enormes. E embora as primeiras décadas do século tivessem testemunhado profundas transformações na geografia social da cidade, nem todo mundo concordava com a avaliação do tipo de civilização moderna que havia ou deveria ter surgido.” CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro, 1918-1940. Campinas: Editora da UNICAMP, 2000.. Página 109.
16 - Ibidem – Página 188


Bibliografia
ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. São Paulo: Fapesp, 1999.

ABREU, Martha; VIANA, Larissa. Festas Religiosas, cultura e política no Império do Brasil. In: GRINBERG, Keila; SALLES Ricardo. O Brasil Imperial Volume III – 1870 – 1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro, 1918-1940. Campinas: Editora da UNICAMP, 2000.

CORRÊA, Mariza; PISCITELLI, Adriana. “Flores do colonialismo”. Masculinidades numa perspectiva antropológica. Entrevista com Miguel Vale de Almeida. Cadernos Pagu. 11, p201-229, 1998.

RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o gênero. In: Cadernos Pagu (11), p. 89-98, 1998.

NAPOLITANO, Marcos. História & música- história cultural da música popular. Belo Horizontes: Autêntica, 2002.

SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed. UFRJ, 2008.

VAINFAS, Ronaldo (org). Dicionário do Brasil Imperial (1822 – 1889). Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2008.

VAINFAS, Ronaldo; NEVES, Lúcia Bastos Pereira das. Dicionário do Brasil Joanino (1808 – 1821). Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2008.

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