Por Nathalia Nogueira Bastos e Soraia Ramos da Silva
Lundu retratado por Earle, Rio de Janeiro, século XIX. Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/retrato/batuques-em-lisboa |
Segundo Marcos Napolitano em seu livro, História &
Música, nos últimos anos tem sido comum a utilização da
canção como fonte para a pesquisa histórica, tanto para recursos
didáticos quanto para o ensino de humanidades. No Brasil, a canção
ocupa um lugar especial na produção cultural e através de suas
matizes contribui como um espelho para apresentar não só as
mudanças sociais, mas também as nossas sociabilidades e
sensibilidades coletivas. Portanto essa seria a justificativa para o
uso da canção como documento e recurso didático.
Napolitano acredita ser fundamental a articulação
entre “texto” e “contexto” para que a análise não seja
reduzida e apresenta, o que para ele é, o grande desafio do
pesquisador em música popular.
“O grande desafio de todo pesquisador em música
popular é mapear as camadas de sentido embutidas numa obra musical,
bem como suas formas de inserção na sociedade e na história,
evitando, ao mesmo tempo, as simplificações e mecanicismos
analíticos que podem deturpar a natureza polissêmica (que possui
vários sentidos) e complexa de qualquer documento de natureza
estética.”1
Napolitano acredita ser necessidade de todos os
pesquisadores de música, compreender as diferentes manifestações e
estilos musicais dentro de sua época, e cena musical na qual está
inserida sem consagrar ou reproduzir hierarquias de valores herdadas
ou representar seu gosto pessoal na crítica histórica.
Para compreendermos o contexto, utilizaremos a historiadora Martha Abreu, que mergulha sobre as manifestações populares
que envolviam as festas do Divino Espírito Santo, desde as atitudes
de devoção até as apresentações dos variados gêneros musicais e
teatrais. Entre as valsas e os batuques destacavam-se os sensuais
“lundus”, gênero que confundia livres e escravos, brancos e
negros que possibilitava a criação de novos estilos de dança e
música.
Além disso, utilizaremos as relações de gênero, como
uma forma de leitura da fonte, destacando alguns discursos utilizados
no início do século XX para definir a mulher. Margareth Rago
entende gênero como uma categoria que não vem substituir História
das Mulheres, mas sim como uma saída as necessidades de ampliação
do vocabulário para conseguir “dar conta da multiplicidade das
dimensões constitutivas das práticas sociais e individuais.”2
O sexo ganha outras dimensões e possibilidades de análise, afinal a
construção da identidade pessoal e coletiva perpassa por ele. Mas o
essencial é perceber a construção dessas diferenças sexuais,
desnaturalizando as representações até então cristalizadas no
social, não somente na leitura do passado, mas principalmente na
construção de formas mais liberais e pacíficas de convivência no
presente. Para isso é necessário a desmantelar a hierarquização
dos grupos para que os iguais possam conviver respeitando as suas
subjetividades.3
Os benefícios da utilização da categoria Gênero são
destacados por Rago da seguinte forma. Primeiramente permitindo
sexualizar as experiências humanas colocando em xeque a prática
narrativa dessexualizada, embora conscientes de que o sexo faz parte
das nossas experiências, raramente incorporaram o sexo na dimensão
analítica. Segundo, tal categoria “permitiu nomear campos das
práticas sociais e individuais que conhecemos mal, mas que intuímos
de algum modo.”(RAGO – 1998) passando a perceber as diferenças
entre os universos masculino e feminino não apenas por determinações
biológicas e sim por experiências socio-históricas, marcadas por
questões de valores, crenças, simbolismos e outros aspectos
passíveis de reflexão. Terceiro, o gênero tornou-se um aliado nas
análises dos aspectos da vida humana impulsionado pela questão dos
problemas das fontes. 4
“Por um lado o gênero aparece como construção simbólica na
qual, de fato, masculinidades e feminilidades se descolocam de homens
e mulheres. Por outro, na análise concreta há um certo limite: você
[Almeida] acaba associando sempre masculinidades a homens. E tenho a
impressão que esse limite se relaciona com a maneira como você
pensa a identidade.”5
O
lundu
O lundu é um gênero musical datado do século XVIII e
uma dança de natureza híbrida, criado em meio aos batuques dos
escravos trazidos para o Brasil, tendo particularidades de regiões
como Angola e Portugal.
Da África, o lundu herdou a base rítmica e a
malemolência, tendo um aspecto lascivo representado nas umbigadas,
rebolados e gestos que lembravam atos sexuais. Da Europa, o lundu
aproveitou características mais ligadas para a dança como o estalar
de dedos, a melodia e a harmonia além da inserção de
acompanhamentos instrumentais como o bandolim. Em Portugal o lundu
recebeu instrumentos de corda, porém D.Manuel a proibiu, já que
considerava uma música/dança que contrariava os maus costumes.
Nos finais do século XVIII, o lundu evolui como uma
forma de canção urbana, acompanhada de versos em sua maioria de
cunho humorístico e lascivo tornando-se uma dança popular de salão.
Durante o século XIX, o lundu se torna uma forma musical dominante,
sendo o primeiro ritmo com influências africanas a ser aceito pelos
brancos. Ainda nesse período irão surgir importantes compositores
(Domingos Caldas Barbosa, Francisco Manuel da Silva, Laurindo Rabelo
e Xisto Bahia, entre outros) desta forma musical, e mais instrumentos
de corda são inseridos.
O lundu foi considerado por muitos viajantes
estrangeiros como gênero de dança e música mais difundido no
Brasil no século XIX, sendo muito difícil precisar suas
características e significados devido a variedade de situações em
que era executado ou cantada. No século XX, o lundu vai perdendo seu
legado, muitos pesquisadores defendem que o lundu foi o primeiro
ritmo “afro-brasileiro” em formato de canção sendo fruto de um
sincretismo que originou o samba.
“Não
são raras as descrições de viajantes, por todo o Império, que
valorizavam esses traços, sendo frequentes as que aproximavam os
lundus dos batuques de negros e escravos. O estabelecimento dos
limites entre as várias danças e músicas populares sempre foi um
dilema para os folcloristas que a isso se dedicaram, pois lundus,
chulas e fados – também conhecidos como fandangos – muitas vezes
foram descritos por viajantes estrangeiros e cronistas locais com
características estilísticas e sociais muito próximas. Ora
aparecem como estilo de gente do país, marcado pelo requebro de
negros, mestiços, escravos ou livres pobres, ou como danças que
evidenciam a influência ibérica; ora apresentam uma coreografia de
roda, com saracoteios inimitáveis, passos ondulados e engraçados. À
s vezes aparecem marcados pelo ritmo de palmas ou estalar dos dedos,
acompanhados de violões, cavaquinhos, flautas, violas, urucungos
(espécie de berimbau) e marimbas (lâminas de ferro fixadas a uma
prancheta de madeira), instrumentos de evidentes traços africanos.”6
Os lundus que eram dançados e tocados em teatros, casas
de diversão e circos, quase sempre eram acompanhados por piano.
Apresentavam, em geral, um gênero música humorística devido o
interesse de compositores de modinhas eruditas e dos músicos de
teatros, em atrair mais público. Algumas publicações de lundus
traziam a autoria de renomados escritores da literatura nacional,
como: Gonçalves de Magalhães, Joaquim Manoel de Macedo, Castro
Alves e Mello Moraes Filho.
Na primeira parte do livro Feitiço
Decente- transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933) o
autor Carlos Sandoni, vai trabalhar com o lundu sendo a origem do
samba. Com o título “Doces lundus, para nhonhô sonhar...” o
autor vai trabalhar com alguns aspectos da música de salão do
século XIX, diretamente ligados ao inicio do samba; como
o lundu, o maxixe, a polca-lundu
entre outros. Para Sandoni a inserção no passado ajudará
a compreender um universo musical e ideológico do qual o samba
carioca era atribuído na sua fase inicial. O ator evidencia as
diferentes designações da palavra lundu, para afirmar que o mesmo
trabalhará
com o lundu de salão.
Para Sandroni o aparecimento dos
lundus-canção
(impressos em 1830) teve um grande personagem histórico da música
popular brasileira, o padre mulato Domingos Caldas Barbosa
(1738-1800) sendo este considerado como introdutor do lundu e da
modinha em Portugal. Segundo Sandroni os livros de mais importância
sobre lundu
são A modinha e o lundu
do século XVIII, de Araújo e A
modinha e o lundu de Bruno Kiefer.
Nesses trabalhos os autores evidenciam o entrelaço do lundu e
modinha, fica claro então a dificuldade de separar os dois ritmos.
O
lundu uma atração nas “Três Cidras do amor”
Como Sandroni, a autora Martha Abreu também vai
evidenciar a dificuldade em precisar as diferenças entre chulas,
fados, modinha e o próprio lundu. A autora lembra que a origem do
lundu ao final do século XVIII, na fusão de ritmos e movimentos
obteve inegavelmente uma matriz popular e negra.
“Os
homens e mulheres que realizavam os indefinidos e inimitáveis
requebros, umbigadas e movimentos lascivos não nasceram nos ricos
salões de baile; estavam na rua, reuniam-se nas festas do Divino
onde seus ritmos prediletos eram apresentados como atração e
divertimento.”7
Martha Abreu salienta que o lundu como outros ritmos
eram marcas portuguesas, estilo de gente de um país e requebros de
negros. O ritmo ao som de violas, marimbas, estalar de dedos e bater
de palmas. Apresentando coreografia de roda, saracoteios, passos
ondulados um tanto engraçado e variado. Através dessas colocações,
a autora procurou evidenciar que eram gêneros difundidos e
irreverentemente apropriados por setores populares, e que é difícil
circunscrever a um único grupo étnico ou social específico.
A partir do lundu a autora procura mostrar que o ritmo
de alguma forma pode ser útil para denominar e qualificar tudo o que
acontecia nas barracas, como a de Teles, nas festas do Divino. Além
de pesquisas em obras de folcloristas a autora utiliza-se de
informações/conclusões de dois grandes pesquisadores do tema,
Mário de Andrade e José Ramos Tinhorão.
Mario de Andrade defende que o lundu foi uma
transformação brasileira de batuques angolanos, sendo algumas vezes
acompanhado por instrumentos de corda. E numa incrível adaptação
para o aristocrático piano acabou chegando aos salões. Porém não
deixou de ser identificado como uma dança de pretos.
Para José Tinhorão o lundu também é considerado uma
forma de canção e dança de origens derivadas das rodas de batuque
dos negros africanos, tendo certo humor sendo suas primeiras
aparições no século XVIII. O autor também vai falar sobre a
utilização de instrumentos como o violão e a viola, nos lundu fora
dos terreiros de batuque.
“[...]
quando acontecia fora dos terreiros de batuque, com a viola e o
violão, a influência da percussão aparecia na entonação em ritmo
cadenciado e onomatopeico, ao final dos quais se acrescentava o
estribilho, que traduzia a parte cantada em coro, com acompanhamento
de palmas.”8
Tinhorão ainda vai fazer algumas dissociações entre
lundu-canção e lundu-dança no século XIX, sendo o primeiro
apresentado numa forma de estrutura declamatória com intervalos
curtos, fazendo crescer o interesse de compositores cultos de
modinhas eruditas e músicos teatrais. Os mesmos viam um bom
casamento entre um texto engraçado com a malicia da dança,
características essas que trariam oportunidade de mais público. O
autor confirma e retrata a entrada do lundu em outros campos, como os
salões aristocráticos.
“Tinhorão
confirma, juntamente com alguns viajantes consultados, que o lundu
chegou a ser tocado nos salões aristocráticos do primeiro e segundo
reinados embora os seus movimentos de umbigada, a marca registrada
deste gênero, segundo o pesquisador, nunca tenham sido vistos com
bons olhos.”9
E acredita que ainda no início do século XIX, o lundu
sem a batucada ganhou expressão nos teatros, e aproximações com
outros estilos.
“Desde
1820, foi nos teatros que o lundu sem batucada encontrou grande
expressão. Quando da entrada da polca europeia, em meados do século,
a aproximação dos dois estilos deu maior trânsito ao lundu nos
ambientes aristocráticos.”10
Para Martha Abreu a grande dificuldade, dentre os
estilos populares de dança e música no Rio de Janeiro, é a tarefa
de especificar as diferenças entre lundus e os batuques nas
descrições dos viajantes consultados por ela.
Pela presença negra e/ou escrava além de movimentos
corporais, estalar de dedos e utilização de percussão e violão
eram elementos que se interlaçavam complicando o estabelecimento de
uma separação nítida entre os dois ritmos.
A autora vai utilizar informações descritas por
Rugendas um desenhista de uma expedição científica na década de
1820, que considerava o batuque a dança a habitual dos negros mesmo
sendo introduzido o estalar de dedos se aproximando assim de
definições apropriadas ao lundu. O lundu foi apontado também como
uma dança negra, porém também poderia ser tocada/executada por
portugueses ao som de violões por um ou mais pares.
Abreu trouxe para o seu trabalho
ilustrações feitas por Rugendas em que são ilustrados o batuque e
dois lundus.11
Na ilustração do lundu - ilustração 512
- segundo Abreu, o artista dá a impressão de que a dança é
executada por homens e mulheres livres próximo de uma venda todos os
participantes sendo “homens de cor”. Na segunda gravura de lundu
– ilustração 613
- o casal principal é branco, o movimento dos dedos destaca-se e
fica visível a utilização de violão, os homens e mulheres negros
agora aparecem apenas na assistência.
“[...]
É significativo que seja o lundu, e não o batuque o gênero visto
pelos viajantes como o de maior trânsito entre diferentes segmentos
sociais e éticos da cidade e suas cermanias. Ao lado das
aproximações entre os gêneros de música e dança, não se pode
destacar completamente uma certa hierarquia sociomusical. Nesse
sentido, as imagens de Rugendas aparecem emblemáticas.”14
Martha Abreu nas palavras finais de seu livro faz uma
pequena associação/comparação com o atual estágio da sociedade.
A autora depois de apresentar o lundu nos séculos XIX e XX, vai
fazer uma associação com outro ritmo que nos dias atuais também
sofre das mesmas críticas que o lundu sofreu anteriormente.
Em 21
de outubro de 1995 o jornal do Brasil,
colocou em discussão a novidade em termos musicais no Rio de
Janeiro, os bailes funks no morro do Chapéu Mangueira. Em que
“morados do asfalto” reclamavam do intenso barulho que os bailes
provocavam. Esses moradores explicaram que queriam acabar com o funk
não por causa do som, mais porque os jovens de classe média estavam
se misturando com o pessoal do morro.
Abreu então faz com que possamos a partir de um estilo
musical atual, no caso o funk, entender como se deu a miscigenação
de um ritmo de negros/africanos com instrumentos e participação de
homens brancos em territórios proibidos, como os grandes salões de
festa.
O
lundu como fonte
Título: A mulher é o diabo de saia.
Autoria: Desconhecida
Intérprete: Mário Pinheiro
Data da gravação: 1904-1907
Gênero musical: Lundu
A mulher é o diabo de saia
A mulher é o diabo de saia, lundu cantado por Mário
Pinheiro, Rio de Janeiro...
A mulher é o diabo de saia
Para sossego devia morrer
A mulher é o diabo de saia
Para sossego devia morrer
A mulher é perversa para o homem
A mulher não devia nascer
A mulher é perversa para o homem
A mulher não devia nascer
A mulher é um ente sem alma
Em seu [ ] é todo pacato
A mulher é um ente sem alma
Em seu [ ] é todo pacato
Tem unha [ ] de arranha
A mulher só tem unhas de gato
Tem unha [ ] de arranha
A mulher só tem unhas de gato
Ouça amigos, eu dou um conselho.
E quero que seja cumprido
Ouça amigos, eu dou um conselho.
E quero que seja cumprido
Antes morra da febre amarela
Do que pensar em ser marido
Antes morra de febre amarela
Do que pensar em ser marido
Se o homem é um anjo de calça
E veio só para sofrer
Se o homem é um anjo de calça
E veio só para sofrer
Trabalha e nunca descansa
Até o momento de morrer
Trabalha e nunca descansa
Até o momento de morrer...
Na música de Mário Pinheiro, A mulher é o diabo de
Saia, tem como tema geral de forma satírica a mulher em comparação
com o diabo. “Quem” fala através da letra é um homem que se
dirige aparentemente a outros homens. O autor da canção vai
utilizar-se de associações entre a mulher é o diabo, a mulher
tendo garras de gato, além de se utilizar de rimas para compor a
letra.
Por não possuir conhecimentos acerca da estrutura
musical e nem a partitura da canção não conseguimos visualizar
informações importantes para a análise de fonte. Com o andamento
rápido a canção se torna bem animada. É perceptível a utilização
de dois instrumentos: o violão e o piano. O tom de voz do cantor é
sempre altivo. O “clima” e a mensagem observados na letra são
compatíveis, letra animada melodia rápida. Assim como vimos
anteriormente, era comum a criação de músicas com temas
engraçados, como forma de atrair os ouvidos da população.A partir
disso podemos criar uma análise da música, a partir das relações
de gênero, onde podemos encontrar uma critica satírica à mulher e
uma valorização do trabalho fora de casa.
A música é datada do início do século XX (1902 de
acordo com informações do Instituto Moreira Salles) e a partir de
sua análise pretendemos estabelecer algumas características
relacionadas ao feminino e ao masculino presentes na canção.
No livro Em Defesa da Honra a
historiadora Sueann Caulfield trabalha a moralidade na cidade do Rio
de Janeiro no início do século XX. Nesse livro ela trabalha a
importância da mulher na construção da moral da nação. A mulher
constitui a base da honra da família, que por sua vez foi entendida
como base da nação brasileira.15
Além disso, em
literaturas diversas, quando a mulher é referida está sempre ligada
às forças da natureza, como
algo incontrolável, instável e imprevisível. Já o homem é ligado
a razão e ao bom senso. Não diferente, na canção a mulher é
comparada ao diabo, como se o homem estivesse a espreita de um
ataque, e estive em perigo. Coloca o homem como vítima da fúria
feminina e o homem, trabalhador que só quer descansar para mais um
dia de trabalho. Mas estaria
o autor da canção se referindo ao perigo doméstico da mulher? O
perigo que o homem corre dentro de casa? Acreditamos que essa canção
não está se referindo necessariamente a mulher de casa, mas sim a
mulher que está começando a adentrar o espaço público. O
gênero era uma privilegiada forma de distinção social.
“As garotas modernas
eram culpadas não só pela astúcia e outros conhecimentos
indecorosos que seus ambientes ofereciam, mas também por atividades
que as livravam da disciplina familiar. […] A associação da
liberdade da mulher com a desonra sexual não era totalmente nova. O
termo “mulher livre”, empregado como sinônimo de “mulher
pública”, significava prostituta no uso popular e jurídico desde
muito antes. Isso é uma ironia, pois muitos senhores obrigavam as
escravas à prostituição, antes da Abolição em 1888, e a
importação de prostitutas estrangeiras era conhecida como 'tráfico
de escravas brancas'”.16
A partir dessa
leitura, podemos dizer que a mulher que a canção se refere é a
mulher perigosa, aquela que mente, que dissimula e engana os homens
trabalhadores que só desejam descansar para mais um dia de trabalho.
A música é como um alerta ao homem para as artimanhas femininas que
tentarão iludi-lo para casar com ele. Assim
como destaca Caulfield, as músicas com batidas mais sensuais estão
presente nas ruas, nas noites boêmicas da cidade. O que nos ajuda a
compreender que essa música não está direcionada para a mulher
dona de casa, mas sim a mulher que está na noite, na boêmia
carioca.
Não é possível
caracterizar o compositor da canção, já que este é desconhecido,
mas podemos fazer uma breve apresentação do interprete. Mário
Pinheiro foi
um
cantor e violonista, nascido
em 1880
em Campos no
Rio de Janeiro e faleceu
aos
43 anos no Rio de Janeiro em janeiro
de 1923.
Filho de uma enfermeira cearense, estreou sua vida artística em
um e
logo passou
a cantar no Passeio Público, geralmente acompanhando-se ao violão.
Barítono, tornou-se no melhor cantor brasileiro do início do
século. Em
companhia de
Bahiano, Cadete, Nozinho e Eduardo das Neves, formou um
quadro
de cantores contratados por Fred Figner da Casa Edison no Rio de
Janeiro, que realizou as primeiras gravações no Brasil, iniciadas
em 1902. Gravou diversas
modinhas, lundus e
cançonetas.
Mário
possuía uma voz e dicção privilegiada e em
1909 participou
da programação de inauguração do Teatro Municipal do Rio de
Janeiro onde representava
o personagem Tapir, na ópera Moema,
de autoria de Delgado de Carvalho. Em
1910, viajou
para os Estados
Unidos
e gravou
aproximadamente 100 discos. Por volta de 1912, seguiu
para a Itália onde, estudando canto, chegou
a se
apresentar
no Teatro Scala, de Milão. Na Itália casou-se com a harpista Aída,
com
quem teve dois filhos. Volta para o Brasil em 1917, agora como
baixo-cantante de uma companhia lírica e começa então a gravar no
Odeon. A partir de 1920, sua carreira e saúde começam a declinar,
com o surgimento de novos cantores e frágil saúde em 1923 falece em
plena miséria.
Napolitano também destaca que é necessário
compreender a recepção musical em planos multidimensionais e
cruzados, revendo a premissa de se pesquisar a música isolada dos
ouvintes. Porém para dar conta dessa premissa seria necessário ter
outros dispositivos de pesquisa e ter acesso a outros tipos de
fontes, que não coube dentro do escopo desse trabalho.
Nós tivemos um grande problema em
conseguir ouvir e entender,
para transcrever, a letra da música. Nós a conseguimos a canção
no site do Instituto Moreira Salles, porém não tinha a letra nem a
partitura disponibilizadas em versão
digital online. Nem informações acerca
do compositor ou da forma como ela chegou ao acervo.
Vimos que o lundu foi um ritmo datado desde o século VIII, que foi
criado em meio a um sincretismo e que primeiramente considerado um
ritmo de negros e depois se adentrou em grandes salões da sociedade.
Com Martha Abreu conseguimos
apresentar todo o caminho percorrido pelo lundu, no Rio de Janeiro
nos séculos XIX e XX, percebendo
que esse era um ritmo que crescia e chamava atenção de muitos, como
os folcloristas e viajantes. Os mesmos ainda sem saber separar os
variados ritmos que poderíamos chamar de popular, como o lundu, o
batuque, a chula, o fado, entre outros. Sendo esses ritmos sempre
considerados uma música de negro. E ao final nós trás uma
consideração pertinente em relação a O
Que é a Música Popular? Ontem e
nos dias atuais e suas intervenções/contribuições para se
entender o contexto histórico de determinado tempo e lugar.
Além disso, utilizamos a fonte
para compreender a sociedade através
das relações de gênero, a
partir da cultura popular no Rio de
Janeiro. Através da música popular é possível determinar um pouco
do discurso heteronormativo, misógino que tinha a mulher como um
perigo a ser temido e a ser dominado. Avisando os perigos da espécie,
inconstante, perigosa. Nesse caso, o
alcance que a música pode alcançar, a torna como um instrumento de
pesquisa muito importante para compreender o passado.
Notas:
1 - NAPOLITANO, Marcos. História
& música- história cultural da música popular.
Belo Horizontes: Autêntica, 2002. – Página 53.
2 - RAGO,
Margareth. Descobrindo
historicamente o gênero.
In: Cadernos
Pagu
(11), 1998. Página
98
3 - Ibidem - Página
92
4 - RAGO, Margareth.
Descobrindo
historicamente o gênero.
In: Cadernos Pagu
(11), 1998. Páginas
95 – 96.
5 - CORRÊA,
Mariza; PISCITELLI, Adriana. “Flores do colonialismo”.
Masculinidades numa perspectiva antropológica. Entrevista com
Miguel Vale de Almeida. Cadernos Pagu.
11, p201-229, 1998. Página
210.
6 - VAINFAS,
Ronaldo – Verbete Lundus In: _____ Dicionário do Brasil
Imperial. Rio de Janeiro: Editora
Objetiva, 2008.– Página 499.
7 - ABREU,
Martha. O Império do Divino: festas
religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro,
1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. São Paulo: Fapesp, 1999.
– Página 79
8 - Ibidem
– Página 83
9 - Ibidem
– Páginas 83 e 84
10 - Ibidem
– Página 83
11 - Ibidem
– Páginas 85, 87 e 89
12 - Ibidem
– Página 87
13 - Ibidem
– Página 86
14 - Ibidem
– Página 92.
15 - “Na
prática a defesa da “moralidade civilizada” por meio das
políticas urbanas - assim como a defesa da honra da família no
direito – provoca conflitos enormes. E embora as primeiras décadas
do século tivessem testemunhado profundas transformações na
geografia social da cidade, nem todo mundo concordava com a
avaliação do tipo de civilização moderna que havia ou deveria
ter surgido.” CAULFIELD, Sueann. Em
defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de
Janeiro, 1918-1940. Campinas:
Editora da UNICAMP, 2000.. Página 109.
Bibliografia
ABREU, Martha. O Império do Divino: festas
religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira. São Paulo: Fapesp, 1999.
ABREU, Martha; VIANA, Larissa. Festas Religiosas,
cultura e política no Império do Brasil. In: GRINBERG, Keila;
SALLES Ricardo. O Brasil Imperial Volume III – 1870 – 1889.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade,
modernidade e nação no Rio de Janeiro, 1918-1940. Campinas:
Editora da UNICAMP, 2000.
CORRÊA, Mariza; PISCITELLI, Adriana. “Flores do
colonialismo”. Masculinidades numa perspectiva antropológica.
Entrevista com Miguel Vale de Almeida. Cadernos Pagu. 11,
p201-229, 1998.
RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o gênero.
In: Cadernos Pagu (11), p. 89-98, 1998.
NAPOLITANO, Marcos. História & música- história
cultural da música popular. Belo Horizontes: Autêntica, 2002.
SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações
do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar. Ed. UFRJ, 2008.
VAINFAS, Ronaldo (org). Dicionário do Brasil
Imperial (1822 – 1889). Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2008.
VAINFAS, Ronaldo; NEVES, Lúcia Bastos Pereira das.
Dicionário do Brasil Joanino (1808 – 1821). Rio de Janeiro:
Editora Objetiva, 2008.
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