LP Panis Et Circencis - Lançado em 1968 |
Por Vanir Junior
Com a perseguição
social que se instalou com o regime ditatorial de 1964, ocorreram inúmeras
ações contestatórias de cunho popular contra o governo. Entre as várias mobilizações
político-sociais (muitas já eram anteriores ao ano de 64) é possível mencionar,
por exemplo, o engajamento do movimento estudantil[1]e
as guerrilhas rurais e urbanas.
Além da mobilização
política de contestação, mais do que evidente neste momento da história
brasileira, há também um ponto que ainda não é tratado com a devida atenção
pela historiografia, apesar de ter sido de extrema relevância no contexto
histórico-social da ditadura: a mobilização artística e cultural. O ambiente
artístico brasileiro em tal período foi de fundamental importância no que diz
respeito à resistência e à contestação do regime político ditatorial, ao
proporcionar o fortalecimento e consolidação do que a historiografia entende
por arte engajada.
Neste sentido, pode-se
falar da música como um importante veículo de mensagens de contestação política,
já que a mesma era cada vez mais ligada às reivindicações políticas contrárias
à opressão do regime militar. A música, assim como grande parte das artes
engajadas, propôs a defesa da nação e sua re-significação pela ótica popular,
contra o imperialismo cultural estrangeiro, bem como contra a burguesia
alinhada a este mesmo imperialismo.
Os festivais da canção,
ao longo de toda a década de 1960, por mais que estimulassem a competição em um
ambiente cultural plural, no qual seus artistas traçavam caminhos diversos –
apesar de ser possível falar de uma mesma estrutura de sentimento[2] –,
puderam mostrar a diligência política presente no campo artístico musical, ao
relevarem uma infinidade de gêneros musicais, como rock, as chanchadas, o
samba, entre outros.
Desta forma, o objetivo
deste trabalho é evidenciar a importância do tropicalismo musical (lembrando
que o tropicalismo não foi apenas um movimento de cunho musical, tendo variadas
vertentes, como o teatro e as artes visuais) como movimento que buscou
intensificar a postura de contestação social através da radicalização da arte
engajada e, deste modo, derrubar fronteiras entre as artes do período, através
de nova abordagem artística com respeito ao nacional-popular, bem como sua
incorporação ao que se entende por MPB. Entretanto, antes disso, faz-se
importante – e necessário – saber como se deu o nascimento da música brasileira
como arte engajada para, em seguida, focarmos na trajetória artística do movimento
tropicalista.
O
surgimento da música politicamente engajada:
De acordo com Marcos
Napolitano, a música popular engajada foi aquela que conseguiu estabelecer seu
lugar no grande público, especialmente no ano de 1965. Neste ano se deu o
nascimento da música popular brasileira [3].
Mas a música engajada, assim como outras artes classificadas do mesmo modo,
como o teatro e o cinema, segundo este autor, não nascia aí. Apenas ganhava
mais força neste momento.
Segundo
Napolitano, é possível dizer que o primeiro conjunto de músicas engajadas
politicamente remonta o período governo do presidente João Goulart[4],
com nomes como Carlos Lira, Sérgio Ricardo, Nara Leão[5],
entre outros. Em 1965, a música engajada ganhava cada vez mais espaço nos meios
de comunicação, especialmente nos famosos festivais de TV, o que permitiu com
que a mesma ocupasse lugar de considerável importância entre as massas[6].
O
Brasil era invadido por uma ambiência questionadora, que se consolidava como um
desdobramento da Bossa Nova, mas que negava, em algum grau, o tom intimista das
letras e passava a focar mais no aspecto de crítica social[7],
num âmbito de maior politização, geralmente com compositores alinhados à
esquerda política. Em suas canções perpassava o tema do nacional-popular[8], o
que ficou claro, por exemplo, nas músicas de Nara Leão, que refletiam os anseios sociais
daquela época.
Neste sentido,
Napolitano ressalta a importância da composição Arrastão[9],
de Edu Lobo e Vinícius, que tinha como tema:
“...
a solidariedade de uma comunidade de pescadores na luta contra as dificuldades
cotidianas. Homenageava a religiosidade popular, os trabalhadores do povo, um
Brasil solidário e pré-capitalista, cuja ação coletiva e comunitária parecia
querer reiterar um caminho histórico a seguir pela nação, posto em xeque pelo
golpe militar”[10]
As músicas eram comprometidas com o ideal de
sociedade socialista, que foi gestado politicamente entre os anos de 1950 e
1960, em meio a um contexto de demandas reformistas sociais, como ficou evidentemente
claro no mandato do presidente João Goulart. Tal projeto foi quebrado pela
imposição militar de 64[11],
mas, mesmo assim, nos anos posteriores ao golpe, o espírito contestador
permanecia forte nas manifestações musicais.
Com
o passar dos anos, as canções engajadas também garantiam seu espaço no mercado
de LP’s, tendo como marcos nomes como Gilberto Gil e Vinícius de Morais,
fortalecendo o ramo de canções que promoviam culturalmente uma identificação do
popular com a nação.
As
músicas tinham o intuito de questionamento da ordem político-social vigente. As
composições tinham por lirismo um futuro revolucionário. As canções de nomes
como Geraldo Vandré, como Caminhando,
por exemplo, pregavam a importância de haver luta armada como ato de reconstrução sociedade para “o dia que virá”[12].
Este aspecto de um futuro idealizando, fortemente presente em Caminhando,
também estava presente em outras letras de Geraldo Vandré, como em Porta Estandarte: “Por dores e tristezas que bem sei que um dia ainda vão findar, um dia
que vem vindo”.
O
que se pode dizer é que, num primeiro momento, o que norteou culturalmente
estas músicas – assim como grande parte da arte engajada, sendo de esquerda
comunista ou esquerda não comunista – foram os temas marcados pela afirmação do
nacional-popular, que seria possível através da revolução brasileira, tão
reivindicada nos meios artísticos engajados, de modo a re-significar o país. Napolitano
afirma que houve considerável identificação e preferência de membros do campo
artístico-cultural ao PCB[13].
O nascimento do Tropicalismo
Musical e sua influência na MPB:
Com
relação ao aspecto nacional-popular da música engajada, dois nomes foram
importantes no sentido de serem responsáveis por acrescentar novas roupagens ao
movimento. É um erro pensar a música engajada como uma coisa só. Marcelo
Ridenti chama a atenção para o fato de que não havia uma total identidade entre
os artistas desta época. Desta forma, com relação a linhas culturais
divergentes dentro da própria música engajada, pode-se falar de Chico Buarque e
Caetano Veloso[14].
Segundo Napolitano, Chico Buarque, mesmo tendo identificação com o
nacional-popular, prezou em suas canções pelo lirismo nostálgico em detrimento
do futuro revolucionário (do dia que virá)[15].
Maria Bethania, Caetano Veloso, Gal Costa e Gilberto Gil. |
Já
Caetano e Gilberto Gil deram início ao movimento que ficou conhecido como
Tropicália. O movimento surgiu a partir do III Festival de Música Popular da TV
Record[16],
em 1967, com as propostas musicais inovadoras de Caetano e Gil, como, por
exemplo, o uso da guitarra elétrica nas músicas, além da influência do pop estrangeiro
de nomes como Beatles e Paul Anka. Isto evidenciou o aspecto antropofágico do
movimento, uma vez que mesclava elementos da cultura internacional à música
brasileira, prezando pela universalidade. O movimento ganhou o nome de Tropicália com base na obra homônima de Hélio Oiticica[17],
que tinha como base a mescla de variadas tendências artísticas, assim como a
música tropicalista se propunha a ser.
Gilberto
Gil, por exemplo, defendeu a abertura do cenário musical brasileiro a outros
gêneros e costumes musicais[18],
o que permitiu a Caetano Veloso classificar o movimento como um
neoantropofagismo. Isto é marcante no lançamento de Panis et Circensis, que, segundo Napolitano:
“... trazia uma colagem de sons,
gêneros e ritmos populares, nacionais e internacionais. Em meio às composições
do disco, assinadas por Gil, Caetano, Torquato Neto, Capinam e Tom Zé, com
arranjo de Rogério Duprat, pode-se ouvir diversos fragmentos sonoros e citações
poéticas, num mosaico cultural saturado de críticas ideológicas: Danúbio Azul,
Frank Sinatra, A Internacional, Quero que vá tudo pro inferno, Beatles, ponto
de umbanda, hino religioso, sons da cidade, sons da casa, carta de Pero Vaz de
Caminha, etc.”[19]
Mas
qual era o sentido que os tropicalistas tomavam em meio a esta complexidade
musical? Napolitano diz que eles questionavam a própria tradição do nacional-popular
(juntamente com seus heróis, o jovem e o povo), e a consideravam conservadora e
arcaica[20],
mesmo que incorporassem a mesma como parte de suas estéticas musicais. Tal
atitude demonstra problemas internos do movimento musical engajado.
O
ritmo eletrificado e a fusão com o gênero pop internacional eram vistos pela
esquerda como desvios do que era proposto pela tradição esquerda nacionalista[21]. O
movimento liderado por Gil e Caetano tinha por objetivo acabar com as barreiras
que limitavam o movimento artístico, sobretudo, no que dizia respeito à
contestação social e às restrições do nacional-popular.
A
crítica mais ferrenha da Tropicália à cultura nacional-popular data do ano de
1968 e denunciou a necessidade de radicalização da música engajada. Não se
podia mais adiar a revolução e, para isso, segundo Napolitano, as canções
deveriam ser mais ligadas às questões sócio-políticas e não simples
manifestações culturais televisivas.
Caetano
Veloso evidenciou, em discurso de desabafo, proferido no III Festival da
Canção, que, por um lado, a música engajada estava passando por uma
radicalização. E, por outro, deixou claro os diversos conflitos culturais dentro
da mesma. Sua fala mostra os conflitos musicais entre emepbistas e
tropicalistas[22].
Quando
disse “São a mesma juventude que vão sempre,
sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem!”[23],
atentou para o fato de que a juventude, com sua negatividade às novidades
dentro da arte engajada, seria inútil com relação à política. Aproximando-se do
fim do discurso, em tom irônico, diz debochadamente: “Se vocês forem… se vocês, em política, forem como são em estética,
estamos feitos!”[24].
Caetano insinuou que as escolhas políticas dos jovens são tão desastrosas
quanto às suas escolhas estéticas e isso seria um problema pra sociedade. E como
tendências estéticas desastrosas, com poderiam se pretender tão
revolucionárias?
O
cantor ainda fez uma comparação da juventude ao grupo de anticomunistas que
espancou o elenco de Roda Viva (peça que foi a principal manifestação teatral
do movimento tropicalista[25]),
ao dizer que eram iguais “àqueles que
foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles,
vocês não diferem em nada”
Em
cima do palco, Caetano Veloso falava convictamente e chamou atenção para o fato
de que a arte musical esquerda-nacionalista estava querendo “policiar a música brasileira” e se
fechava para as novas tendências musicais, que também eram contestatórias e se
reivindicavam como pertencentes à esquerda nacionalista, bem como pregavam a
necessidade de revolução, compartilhando, como Ridenti falou, a mesma
“estrutura de sentimento”.
Em seu discurso,
Caetano deixou claro que não queria ter que seguir uma forma imposta e engessada
para protestar socialmente. Ele queria fazer sua música sem qualquer tipo de
impedimentos. Mas seu trabalho foi considerado como inadequado ao espírito
nacionalista das canções-engajadas. O cantor confirma isso quando diz:
“O
Maranhão apresentou, este ano, uma música com arranjo de charleston. Sabem o
que foi? Foi a Gabriela do ano passado, que ele não teve coragem de, no ano
passado, apresentar por ser americana. Mas eu e Gil já abrimos o caminho. O que
é que vocês querem? Eu vim aqui para acabar com isso!”.[26]
Neste
trecho fica evidente a crítica de Caetano a não aceitação, dentro do
movimento da música engajada, de influências que não fossem unicamente
brasileiras. Isto era visto pelos artistas da Tropicália como verdadeiro
absurdo, pois consideravam que o ato de ignorar outras influências era um
ufanismo próximo à mentalidade do nazismo[27].
O discurso de Caetano apenas
confirma a posição de Napolitano ao dizer que a própria música politicamente
engajada estava passando por problemas de questionamento interno[28] e
o quanto a mesma não foi homogênea[29]. Sua
fala revelou as inúmeras contradições do próprio movimento musical
politicamente engajado, que, naquele momento, caiu nos reducionismos a respeito
do que, dentro do mesmo, merecia ou não aparecer na televisão/festivais, por
ser realmente engajado/nacionalista ou não.
Mas
o impacto social do tropicalismo contra esse estado de coisas, com seus
inúmeros questionamentos musicais, não foi em vão. Tal impacto possibilitou que
a MPB pudesse se modificar[30]e,
progressivamente, o movimento foi promovendo aberturas e inserindo estilos
musicais que a MPB e Bossa Nova até então negavam, como o bolero e as
marchinhas[31].
Pode-se
dizer que a Tropicália promoveu uma revisão da MPB[32] e
mesmo com toda a divergência e os embates iniciais, Napolitano diz que a
imposição do Ato Institucional Nº 5, que marcou o auge da repressão do Regime Militar, foi de suma importância para a música brasileira, pois acabou
provocando a união dos estilos empebistas e tropicalistas, o que possibilitou a
formação de uma “frente ampla musical”[33]
contra um inimigo comum. Com o tempo, o tropicalismo foi se modificando,
perdendo suas características anti-emepebistas e, com isso, sendo abarcando
pela MPB, que foi afirmando seu espaço, sendo cada vez mais marcada pelo
aspecto da pluralidade[34]
musical.
Referências
Bibliográficas:
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São
Paulo: EDUSP, 1999.
NAPOLITANO,
Marcos. História e Música – História Cultural da Música Popular. Belo Horizonte:
Autêntica, 2002.
NAPOLITANO,
Marcos. “Forjando a Revolução, remodelando o mercado: arte engajada no Brasil
(1956-1968), In: Nacionalismo e reformismo radical. FERREIRA, Jorge & REIS,
Daniel Aarão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. pp 585-617
__________________;VILAÇA,
M, M. Tropicalismo: As Relíquias do Brasil em Debate. Revista Brasileira de
História. Vol. 18, n.35. São Paulo, 1998, pp. 1-11.
RIDENTI,
Marcelo. Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960, In: Tempo Social, revista
de sociologia da USP, v. 17, n. 1, pp 81- 110.
Fonte trabalhada:
[1] FAUSTO, Boris. História do
Brasil. São Paulo: EDUSP, 1999. p. 478.
[2] RIDENTI, Marcelo. Artistas e
intelectuais no Brasil pós-1960, In: Tempo Social, revista de sociologia da
USP, v. 17, n. 1, pp 81- 110. p. 82.
[3] NAPOLITANO,
Marcos. “Forjando a Revolução, remodelando o mercado: arte engajada no Brasil
(1956-1968), In: Nacionalismo e reformismo radical. FERREIRA, Jorge & REIS,
Daniel Aarão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. pp 585-617. p. 606.
[4] Ibidem p. 607.
[5] Ibidem p.p. 607-608.
[6] Ibidem p. 608.
[7] Ibidem p. 607.
[8] Ibidem p. 608.
[9] Ibidem p. 609.
[10] Ibidem p. 610.
[11] Ibidem p. 587.
[12] Ibidem. p. 611.
[13] Ibidem. p. 588.
[14] NAPOLITANO, Marcos. Forjando a
Revolução...Op. Cit. p. 611.
[15] Ibidem. p. 611.
[16] NAPOLITANO, Marcos; VILAÇA, M, M.
Tropicalismo: As Relíquias do Brasil em Debate. Revista Brasileira de História.
Vol. 18, n.35. São Paulo, 1998, pp. 1-11. p. 2.
[17] Ibidem. p. 3.
[18] Ibidem. p. 6.
[19] Ibidem. p. 6.
[20] NAPOLITANO, Marcos. “Forjando a
Revolução...” Op. Cit. p. 612.
[21] Ibidem. p. 612.
[22] NAPOLITANO, Marcos. História e
Música – História Cultural da Música Popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002,
p. 66.
[23] Discurso “É proibido proibir”
feito por Caetano Veloso em 1968. Retirado do site: <http://tropicalia.com.br/identifisignificados/e-proibido-proibir/discurso-de-caetano>, em 08/09/2013, às 15:31h.
[24]
Trecho do
discurso “É proibido proibir”, disponível em <http://tropicalia.com.br/identifisignificados/e-proibido-proibir/discurso-de-caetano>.
[25] NAPOLITANO, Marcos; VILAÇA, M,
M. Tropicalismo: As Relíquias do Brasil...Op.
Cit. p. 2.
[26] Trecho do discurso “É proibido
proibir”, disponível em <http://tropicalia.com.br/identifisignificados/e-proibido-proibir/discurso-de-caetano>.
[27] NAPOLITANO, Marcos; VILAÇA, M, M.
Tropicalismo: As Relíquias do Brasil...Op.
Cit. p.
[28] NAPOLITANO, Marcos. Forjando a
Revolução... Op. Cit. p. 612.
[29] RIDENTI, Marcelo. Artistas... Op. Cit..p.
94.
[30] NAPOLITANO, Marcos. História e
Música... Op. Cit. p.67.
[31] Ibidem. p. 68.
[32] Ibidem. p. 67.
[33] Ibidem. p. 69.
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