sábado, 7 de dezembro de 2013

LP Panis Et Circencis - Lançado em 1968
Por Vanir Junior

Com a perseguição social que se instalou com o regime ditatorial de 1964, ocorreram inúmeras ações contestatórias de cunho popular contra o governo. Entre as várias mobilizações político-sociais (muitas já eram anteriores ao ano de 64) é possível mencionar, por exemplo, o engajamento do movimento estudantil[1]e as guerrilhas rurais e urbanas.
Além da mobilização política de contestação, mais do que evidente neste momento da história brasileira, há também um ponto que ainda não é tratado com a devida atenção pela historiografia, apesar de ter sido de extrema relevância no contexto histórico-social da ditadura: a mobilização artística e cultural. O ambiente artístico brasileiro em tal período foi de fundamental importância no que diz respeito à resistência e à contestação do regime político ditatorial, ao proporcionar o fortalecimento e consolidação do que a historiografia entende por arte engajada.
Neste sentido, pode-se falar da música como um importante veículo de mensagens de contestação política, já que a mesma era cada vez mais ligada às reivindicações políticas contrárias à opressão do regime militar. A música, assim como grande parte das artes engajadas, propôs a defesa da nação e sua re-significação pela ótica popular, contra o imperialismo cultural estrangeiro, bem como contra a burguesia alinhada a este mesmo imperialismo.
Os festivais da canção, ao longo de toda a década de 1960, por mais que estimulassem a competição em um ambiente cultural plural, no qual seus artistas traçavam caminhos diversos – apesar de ser possível falar de uma mesma estrutura de sentimento[2] –, puderam mostrar a diligência política presente no campo artístico musical, ao relevarem uma infinidade de gêneros musicais, como rock, as chanchadas, o samba, entre outros.
Desta forma, o objetivo deste trabalho é evidenciar a importância do tropicalismo musical (lembrando que o tropicalismo não foi apenas um movimento de cunho musical, tendo variadas vertentes, como o teatro e as artes visuais) como movimento que buscou intensificar a postura de contestação social através da radicalização da arte engajada e, deste modo, derrubar fronteiras entre as artes do período, através de nova abordagem artística com respeito ao nacional-popular, bem como sua incorporação ao que se entende por MPB. Entretanto, antes disso, faz-se importante – e necessário – saber como se deu o nascimento da música brasileira como arte engajada para, em seguida, focarmos na trajetória artística do movimento tropicalista. 

O surgimento da música politicamente engajada:

De acordo com Marcos Napolitano, a música popular engajada foi aquela que conseguiu estabelecer seu lugar no grande público, especialmente no ano de 1965. Neste ano se deu o nascimento da música popular brasileira [3]. Mas a música engajada, assim como outras artes classificadas do mesmo modo, como o teatro e o cinema, segundo este autor, não nascia aí. Apenas ganhava mais força neste momento.
Segundo Napolitano, é possível dizer que o primeiro conjunto de músicas engajadas politicamente remonta o período governo do presidente João Goulart[4], com nomes como Carlos Lira, Sérgio Ricardo, Nara Leão[5], entre outros. Em 1965, a música engajada ganhava cada vez mais espaço nos meios de comunicação, especialmente nos famosos festivais de TV, o que permitiu com que a mesma ocupasse lugar de considerável importância entre as massas[6].
O Brasil era invadido por uma ambiência questionadora, que se consolidava como um desdobramento da Bossa Nova, mas que negava, em algum grau, o tom intimista das letras e passava a focar mais no aspecto de crítica social[7], num âmbito de maior politização, geralmente com compositores alinhados à esquerda política. Em suas canções perpassava o tema do nacional-popular[8], o que ficou claro, por exemplo, nas músicas de Nara Leão, que refletiam os anseios sociais daquela época.
Neste sentido, Napolitano ressalta a importância da composição Arrastão[9], de Edu Lobo e Vinícius, que tinha como tema:

“... a solidariedade de uma comunidade de pescadores na luta contra as dificuldades cotidianas. Homenageava a religiosidade popular, os trabalhadores do povo, um Brasil solidário e pré-capitalista, cuja ação coletiva e comunitária parecia querer reiterar um caminho histórico a seguir pela nação, posto em xeque pelo golpe militar[10]

             As músicas eram comprometidas com o ideal de sociedade socialista, que foi gestado politicamente entre os anos de 1950 e 1960, em meio a um contexto de demandas reformistas sociais, como ficou evidentemente claro no mandato do presidente João Goulart. Tal projeto foi quebrado pela imposição militar de 64[11], mas, mesmo assim, nos anos posteriores ao golpe, o espírito contestador permanecia forte nas manifestações musicais.
Com o passar dos anos, as canções engajadas também garantiam seu espaço no mercado de LP’s, tendo como marcos nomes como Gilberto Gil e Vinícius de Morais, fortalecendo o ramo de canções que promoviam culturalmente uma identificação do popular com a nação.
As músicas tinham o intuito de questionamento da ordem político-social vigente. As composições tinham por lirismo um futuro revolucionário. As canções de nomes como Geraldo Vandré, como Caminhando, por exemplo, pregavam a importância de haver luta armada como ato de reconstrução sociedade para “o dia que virá”[12]. Este aspecto de um futuro idealizando, fortemente presente em Caminhando, também estava presente em outras letras de Geraldo Vandré, como em Porta Estandarte: “Por dores e tristezas que bem sei que um dia ainda vão findar, um dia que vem vindo”.
O que se pode dizer é que, num primeiro momento, o que norteou culturalmente estas músicas – assim como grande parte da arte engajada, sendo de esquerda comunista ou esquerda não comunista – foram os temas marcados pela afirmação do nacional-popular, que seria possível através da revolução brasileira, tão reivindicada nos meios artísticos engajados, de modo a re-significar o país. Napolitano afirma que houve considerável identificação e preferência de membros do campo artístico-cultural ao PCB[13].

O nascimento do Tropicalismo Musical e sua influência na MPB:

Com relação ao aspecto nacional-popular da música engajada, dois nomes foram importantes no sentido de serem responsáveis por acrescentar novas roupagens ao movimento. É um erro pensar a música engajada como uma coisa só. Marcelo Ridenti chama a atenção para o fato de que não havia uma total identidade entre os artistas desta época. Desta forma, com relação a linhas culturais divergentes dentro da própria música engajada, pode-se falar de Chico Buarque e Caetano Veloso[14]. Segundo Napolitano, Chico Buarque, mesmo tendo identificação com o nacional-popular, prezou em suas canções pelo lirismo nostálgico em detrimento do futuro revolucionário (do dia que virá)[15].
Maria Bethania, Caetano Veloso, Gal Costa e Gilberto Gil. 
Já Caetano e Gilberto Gil deram início ao movimento que ficou conhecido como Tropicália. O movimento surgiu a partir do III Festival de Música Popular da TV Record[16], em 1967, com as propostas musicais inovadoras de Caetano e Gil, como, por exemplo, o uso da guitarra elétrica nas músicas, além da influência do pop estrangeiro de nomes como Beatles e Paul Anka. Isto evidenciou o aspecto antropofágico do movimento, uma vez que mesclava elementos da cultura internacional à música brasileira, prezando pela universalidade. O movimento ganhou o nome de Tropicália com base na obra homônima de Hélio Oiticica[17], que tinha como base a mescla de variadas tendências artísticas, assim como a música tropicalista se propunha a ser.
Gilberto Gil, por exemplo, defendeu a abertura do cenário musical brasileiro a outros gêneros e costumes musicais[18], o que permitiu a Caetano Veloso classificar o movimento como um neoantropofagismo. Isto é marcante no lançamento de Panis et Circensis, que, segundo Napolitano:

“... trazia uma colagem de sons, gêneros e ritmos populares, nacionais e internacionais. Em meio às composições do disco, assinadas por Gil, Caetano, Torquato Neto, Capinam e Tom Zé, com arranjo de Rogério Duprat, pode-se ouvir diversos fragmentos sonoros e citações poéticas, num mosaico cultural saturado de críticas ideológicas: Danúbio Azul, Frank Sinatra, A Internacional, Quero que vá tudo pro inferno, Beatles, ponto de umbanda, hino religioso, sons da cidade, sons da casa, carta de Pero Vaz de Caminha, etc.”[19]

Mas qual era o sentido que os tropicalistas tomavam em meio a esta complexidade musical? Napolitano diz que eles questionavam a própria tradição do nacional-popular (juntamente com seus heróis, o jovem e o povo), e a consideravam conservadora e arcaica[20], mesmo que incorporassem a mesma como parte de suas estéticas musicais. Tal atitude demonstra problemas internos do movimento musical engajado.
O ritmo eletrificado e a fusão com o gênero pop internacional eram vistos pela esquerda como desvios do que era proposto pela tradição esquerda nacionalista[21]. O movimento liderado por Gil e Caetano tinha por objetivo acabar com as barreiras que limitavam o movimento artístico, sobretudo, no que dizia respeito à contestação social e às restrições do nacional-popular.
A crítica mais ferrenha da Tropicália à cultura nacional-popular data do ano de 1968 e denunciou a necessidade de radicalização da música engajada. Não se podia mais adiar a revolução e, para isso, segundo Napolitano, as canções deveriam ser mais ligadas às questões sócio-políticas e não simples manifestações culturais televisivas.
Caetano Veloso evidenciou, em discurso de desabafo, proferido no III Festival da Canção, que, por um lado, a música engajada estava passando por uma radicalização. E, por outro, deixou claro os diversos conflitos culturais dentro da mesma. Sua fala mostra os conflitos musicais entre emepbistas e tropicalistas[22].
Quando disse “São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem!”[23], atentou para o fato de que a juventude, com sua negatividade às novidades dentro da arte engajada, seria inútil com relação à política. Aproximando-se do fim do discurso, em tom irônico, diz debochadamente: “Se vocês forem… se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos!”[24]. Caetano insinuou que as escolhas políticas dos jovens são tão desastrosas quanto às suas escolhas estéticas e isso seria um problema pra sociedade. E como tendências estéticas desastrosas, com poderiam se pretender tão revolucionárias?
O cantor ainda fez uma comparação da juventude ao grupo de anticomunistas que espancou o elenco de Roda Viva (peça que foi a principal manifestação teatral do movimento tropicalista[25]), ao dizer que eram iguais “àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada”
Em cima do palco, Caetano Veloso falava convictamente e chamou atenção para o fato de que a arte musical esquerda-nacionalista estava querendo “policiar a música brasileira” e se fechava para as novas tendências musicais, que também eram contestatórias e se reivindicavam como pertencentes à esquerda nacionalista, bem como pregavam a necessidade de revolução, compartilhando, como Ridenti falou, a mesma “estrutura de sentimento”.
Em seu discurso, Caetano deixou claro que não queria ter que seguir uma forma imposta e engessada para protestar socialmente. Ele queria fazer sua música sem qualquer tipo de impedimentos. Mas seu trabalho foi considerado como inadequado ao espírito nacionalista das canções-engajadas. O cantor confirma isso quando diz:

“O Maranhão apresentou, este ano, uma música com arranjo de charleston. Sabem o que foi? Foi a Gabriela do ano passado, que ele não teve coragem de, no ano passado, apresentar por ser americana. Mas eu e Gil já abrimos o caminho. O que é que vocês querem? Eu vim aqui para acabar com isso!”.[26]

            Neste trecho fica evidente a crítica de Caetano a não aceitação, dentro do movimento da música engajada, de influências que não fossem unicamente brasileiras. Isto era visto pelos artistas da Tropicália como verdadeiro absurdo, pois consideravam que o ato de ignorar outras influências era um ufanismo próximo à mentalidade do nazismo[27]
            O discurso de Caetano apenas confirma a posição de Napolitano ao dizer que a própria música politicamente engajada estava passando por problemas de questionamento interno[28] e o quanto a mesma não foi homogênea[29]. Sua fala revelou as inúmeras contradições do próprio movimento musical politicamente engajado, que, naquele momento, caiu nos reducionismos a respeito do que, dentro do mesmo, merecia ou não aparecer na televisão/festivais, por ser realmente engajado/nacionalista ou não.
Mas o impacto social do tropicalismo contra esse estado de coisas, com seus inúmeros questionamentos musicais, não foi em vão. Tal impacto possibilitou que a MPB pudesse se modificar[30]e, progressivamente, o movimento foi promovendo aberturas e inserindo estilos musicais que a MPB e Bossa Nova até então negavam, como o bolero e as marchinhas[31].
Pode-se dizer que a Tropicália promoveu uma revisão da MPB[32] e mesmo com toda a divergência e os embates iniciais, Napolitano diz que a imposição do Ato Institucional Nº 5, que marcou o auge da repressão do Regime Militar, foi de suma importância para a música brasileira, pois acabou provocando a união dos estilos empebistas e tropicalistas, o que possibilitou a formação de uma “frente ampla musical”[33] contra um inimigo comum. Com o tempo, o tropicalismo foi se modificando, perdendo suas características anti-emepebistas e, com isso, sendo abarcando pela MPB, que foi afirmando seu espaço, sendo cada vez mais marcada pelo aspecto da pluralidade[34] musical.    

Referências Bibliográficas:

FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1999.
NAPOLITANO, Marcos. História e Música – História Cultural da Música Popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

NAPOLITANO, Marcos. “Forjando a Revolução, remodelando o mercado: arte engajada no Brasil (1956-1968), In: Nacionalismo e reformismo radical. FERREIRA, Jorge & REIS, Daniel Aarão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. pp 585-617

__________________;VILAÇA, M, M. Tropicalismo: As Relíquias do Brasil em Debate. Revista Brasileira de História. Vol. 18, n.35. São Paulo, 1998, pp. 1-11.

RIDENTI, Marcelo. Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960, In: Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 1, pp 81- 110.

Fonte trabalhada:

Discurso “É proibido proibir” feito por Caetano Veloso em 1968. Retirado do site: <http://tropicalia.com.br/identifisignificados/e-proibido-proibir/discurso-de-caetano>. Acesso em: 08/09/2013, às 1



[1] FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1999. p. 478.
[2] RIDENTI, Marcelo. Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960, In: Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 1, pp 81- 110. p. 82.

[3] NAPOLITANO, Marcos. “Forjando a Revolução, remodelando o mercado: arte engajada no Brasil (1956-1968), In: Nacionalismo e reformismo radical. FERREIRA, Jorge & REIS, Daniel Aarão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. pp 585-617. p. 606.
[4] Ibidem p. 607.
[5] Ibidem p.p. 607-608.
[6] Ibidem p. 608.
[7] Ibidem p. 607.
[8] Ibidem p. 608.
[9] Ibidem p. 609.
[10] Ibidem p. 610.
[11] Ibidem p. 587.
[12] Ibidem. p. 611.
[13] Ibidem. p. 588.
[14] NAPOLITANO, Marcos. Forjando a Revolução...Op. Cit. p. 611.
[15] Ibidem. p. 611.
[16] NAPOLITANO, Marcos; VILAÇA, M, M. Tropicalismo: As Relíquias do Brasil em Debate. Revista Brasileira de História. Vol. 18, n.35. São Paulo, 1998, pp. 1-11. p. 2.
[17] Ibidem. p. 3.
[18] Ibidem. p. 6.
[19] Ibidem. p. 6.
[20] NAPOLITANO, Marcos. “Forjando a Revolução...” Op. Cit. p. 612.
[21] Ibidem. p. 612.
[22] NAPOLITANO, Marcos. História e Música – História Cultural da Música Popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002, p. 66.
[23] Discurso “É proibido proibir” feito por Caetano Veloso em 1968. Retirado do site: <http://tropicalia.com.br/identifisignificados/e-proibido-proibir/discurso-de-caetano>, em 08/09/2013, às 15:31h.
[24] Trecho do discurso “É proibido proibir”, disponível em <http://tropicalia.com.br/identifisignificados/e-proibido-proibir/discurso-de-caetano>.
[25] NAPOLITANO, Marcos; VILAÇA, M, M. Tropicalismo: As Relíquias do Brasil...Op. Cit. p. 2.
[26] Trecho do discurso “É proibido proibir”, disponível em <http://tropicalia.com.br/identifisignificados/e-proibido-proibir/discurso-de-caetano>.
[27]  NAPOLITANO, Marcos; VILAÇA, M, M. Tropicalismo: As Relíquias do Brasil...Op. Cit. p.
[28] NAPOLITANO, Marcos. Forjando a Revolução... Op. Cit. p. 612.
[29] RIDENTI, Marcelo. Artistas... Op. Cit..p. 94.
[30] NAPOLITANO, Marcos. História e Música... Op. Cit. p.67.
[31] Ibidem. p. 68.
[32] Ibidem. p. 67.
[33] Ibidem. p. 69.

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