Por Vanir Junior
Tomando como direção o texto de Georges Duby, vemos o delineamento e o estabelecimento de ideologias da hierarquia social baseadas no caráter espiritual, que se dão com o maior impulso no movimento de preeminência da Igreja sobre o corpo social. Como bem citou Hilário Franco Jr. baseado em Mircea Eliade, a sociedade medieval acredita na hierofania, ou seja, na manifestação do sagrado em tudo. Isso quer dizer que a realidade visível estaria determinada pelo invisível, a partir de um Deus criador que tudo via e regulava, conforme o seu próprio reino. A ordenação social é encarada desta forma.
Mas devemos ressaltar que este sistema ideológico não foi inventado naquele momento, mas sim atingiu ápices, por meio de uma lenta evolução. A Igreja, no século XI, por fatores como o enfraquecimento do poder central, reafirmação de políticas como o Agostinianismo Político, retomada da Teoria Gelasiana e a formação de um Clero mais intelectualizado – possibilitado em grande parte pelo Renascimento Carolíngio, que elevou seu nível –, se lançava cada vez mais como reguladora social e ideológica do mundo medieval. Ela se colocava como grande instituição não só religiosa, mas também política.
Ela, retomando as teorias feitas na época áurea da Patrística (séculos IV, V e VI), formada por nomes como Gregório Magno, Agostinho de Hipona e Dionísio (que também formularam teorias a respeito de hierarquia, como é possível perceber na Cidade de Deus, de Agostinho), passa a intensificar a justificativa da sociedade pela otica de uma ordenação divina. Traçava a imagem que a sociedade deveria ter de si mesma.
Eclesiásticos como Eadmar de Canterbury e em especial Adalberon de Laon e Gerardo, baseados em textos bíblicos, em produções da patrística e autoridades eclesiásticas, buscavam a justificativa divina na organização social, ao afirmarem que a sociedade terrestre era determinada por uma ordenação divina. Quer dizer, a sociedade dos homens baseada no céu, que também não tinha igualdade. O mesmo era instituído por hierarquias para o estabelecimento do governo de Deus (assim na terra como no céu). Temos assim a restauração e reafirmação destes ideais entre os anos de 1025 e 1030. E como podemos perceber na obra de Duby, no documento de Adalberon, a ordenação terrestre é baseada na Jerusalém Celeste e lá, o próprio Deus a edificou hierarquizada, para que seus próprios habitantes fossem mais bem governados. “Ela está disposta em hierarquia como a cidade terrestre.” (DUBY, 1967, p.70).
Adalberon de laon afirma que esta ordem na terra é composta por um estatuto divino e um estatuto humano. Este último impõe duas condições: os nobres e os servos. O primeiro, o estatuto divino abarca o clero. Este se coloca fora da lei humana, alegando superioridade. Isso não é uma novidade, afinal, desde o século IV há a crença de que os clérigos haviam recebido a cessão de poderes divinos dos próprios apóstolos. Assim, a teoria alegava a maior proximidade do clero a Deus e a partir do século XI, é um ideal encorpado e divulgado intensamente. O domínio da fé é uno, mas há um triplo estatuto da ordem. A sociedade tripartida se dá por uma ordenação de Deus.
Contudo, há de levar em consideração diversos grupos que simplesmente não se encaixavam dentro do ideal de sociedade tripartida. Entre eles podemos citar judeus, árabes, mercadores. Assim sendo....
....a ordem tripartida se cumpriu totalmente na sociedade medieval?
A resposta é curta: não. As próprias ações da igreja (Reforma Gregoriana, Cruzadas, Marginalização, entre outras), deixam evidente que esta ordem não foi alcançada, e por isso foi necessário tais medidas contra aqueles que não se encaixavam em seu estabelecimento (tentativa de estabelecimento é o melhor termo). Indicam a necessidade de impor uma ordem não alcançada. O que podemos identificar é muito mais um dualismo entre clérigos e laicos, em que se tenta a submissão dos últimos aos primeiros, o que nem sempre acontecia. A tripartição foi a ideologia da função religiosa, que não se cumpriu totalmente na prática, constituindo-se como uma tentativa de traçar uma ordem social. Era encarada pela Igreja como necessária para a harmonia social, pois segundo as teorias eclesiásticas, aquela era ordem a ser cumprida, conforme determinação de Deus. Fugir dela representava uma ameaça ao equilíbrio social.
Mas vejamos um pouco como cada uma das medidas aqui citadas serviram para o estabelecimento da ordem. A Reforma Gregoriana, mais do que propriamente uma mera questão de busca de domínio de poder político entre papa e imperador, deve ser encarada como uma forma de reafirmação da ordem estabelecida por uma determinação divina em que a Igreja estaria no cume, por deter o poder espiritual. Segundo Jacques Le Goff, a questão da disputa entre ambos – Igreja e Império – deve ser encarada como um “teatro de ilusões, por trás do qual se passarão as coisas muito mais importantes” (2004, p.89).
A Reforma tem uma projeção ampla. O Clero, ao propor tal ação, impõe pesadas conseqüências sociais no sentido de identificação e confirmação da superioridade da igreja na sociedade medieval. Todos são chamados a se reformar e conforme isso acontecia, os leigos deveriam reconhecer a superioridade dos cristãos ordenados, os clérigos. Os leigos seriam cristãos de segunda classe frente aos clérigos e tal superioridade era encarada com certa naturalidade.
Buscando também se livrar da influência laica em seus assuntos, como a crescente prática de seu enfeudamento (como bem definiu Ganshof, ao mencionar em seu trabalho as práticas de feudo no ar), além da crescente intervenção do Imperador nos assuntos eclesiásticos, a Igreja, baseada nas escrituras, quando afirmava para dar a Deus o que era de Deus e a César o que era de César, deixava clara não apenas a distinção entre Deus e César, mas também reafirmava a elevação da Igreja a um plano maior, o plano de Deus. A ordem deveria, segundo a sociedade de hierarquias, como diz Adalberon, ser esta, pois a terra segue Jerusalém Celeste. O Estado, para manter paz, deve seguir primeiramente a lei divina, que é detida pela Igreja, que possui inegável superioridade pelo fato de não estar incluída no estatuto humano, como nobres e servos. Ao tentar submeter a Igreja, o Estado estaria saindo da ordem.
Através da concepção que fazia o corpo de Cristo ser o sinônimo do corpo da Igreja, os fiéis, pela eucaristia (o corpo de Cristo sendo partilhado por todos), passavam também a fazer parte deste corpo (daí a hóstia – o movimento de eucaristia mais tarde desembocará no Corpus Christi), temos cada pessoa fazendo não somente parte da sociedade, mas de Deus e seu corpo. E cada um, com a sua função, constituía este corpo.
Ao querer baixar o gládio temporal e submeter toda a sociedade à sua superioridade, podemos identificar a Reforma Gregoriana como uma medida que serviu no sentido de tentar manter a ordem tripartida, pois a Igreja luta para tentar estabelecer sua primazia que é baseada na ordem celeste, por meio da regulação social, resultando em manutenções da vida dos fiéis. Além disso, faz parte de um momento de grande impulso à cristandade, que resultará em grandes repressões para conservar a reforma e ordem.
Com relação às Cruzadas, conforme Hilário Franco Jr., podemos identificá-las como algo que se originará tendo como um dos motivos principais a preservação da ordem religiosa dentro da Cristandade, a partir de movimentos como a Paz de Deus e a Trégua com Deus, que permitiu a progressiva cristianização (podemos dizer que foi a vitória do poder eclesiástico sobre os cavaleiros) do movimento dos cavaleiros, que muitas vezes, atacavam clérigos, desrespeitando a ética da cavalaria e, conseqüentemente, a ordem. A idéia de guerra justa, que ganha as características de guerra santa, procurou, primeiramente impor ordem dentro da Europa, através da tentativa de controlar os cavaleiros e fora, pela cruzada contra os muçulmanos. Em todos os casos, esta medida além de combater aquele que não se encaixa na tripartição social, ainda busca colocar dentro do seu lugar aquele que subverte a ordem. Segundo Jacques Le Goff “queriam purgar a Cristandade do escândalo e dos combates entre correligionários, dar o ardor belicoso do mundo feudal uma finalidade louvável, indicar à Cristandade o grande propósito, o grande desígnio necessário para forjar a unidade de corpo e alma que lhe faltava.” (LE GOFF, Jacques, 2004, p. 66).” (LE GOFF, Jacques, 2004, p. 66).
O que significa dizer que a os cavaleiros passariam a lutar por causas “justas” e assim, a Igreja parecia ter encontrado um modo de dominar às contestações que dividia a cristandade contra ela própria. Temos a manobra teológica de reverter o sentido da guerra que passa a ser justificada e como uma ação purificadora de pecados, principalmente dos cavaleiros, quando se luta contra o “infiel”, ou seja, aquele que não se adéqua a ordem e não faz parte do corpo de Deus. E neste caso, quando dessa luta, não estamos falando somente dos Seljúcidas convertidos ao Islamismo, mas também de Judeus, que são assassinados nos próprios caminhos que levam a Jerusalém, pois em pouco tempo, a cruzada passou a atacar todo aquele que não era cristão.
A marginalização funciona assim como uma conseqüência para aqueles que não se adéquam ao ideal de sociedade tripartida. Ela funciona como uma forma de exclusão. Os que não se identificam com a ordem são colocados à margem da sociedade, através de mecanismo diversos. Citarei aqui dois: as etiquetas, e quando falamos disso, estamos falando de nomes pejorativos, como raposa, lobo, aranha; os sinais, que ficam claros com a imposição do uso da rodela aos Judeus (conforme Latrão IV) ou com o uso de sinos pelos leprosos. Segundo Le Goff, podemos identificar uma série de excluídos: judeus, árabes, hereges, prostitutas, mercadores, mendigos, leprosos, bruxas e vários outros. O não conformismo destes resultava no controle e exclusão, pois estes representavam um perigo para a sociedade sagrada.
Concluí-se, conforme Jerome Baschet, que utilizará como base o pensamento de Georges Duby, que “evidentemente o modelo das três ordens não é uma descrição da realidade social; é uma construção ideológica em conformidade com o imaginário do feudalismo.” (2006, p.166).
Referências Bibliográficas:
BASCHET, Jerome. A Civilização Feudal – Do ano mil à colonização da América. Editora Globo, 2006.
DUBY, Georges. As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo. Edição 2ª. Editorial Estampa: Lisboa, 1986.
DUBY, Georges. O Ano Mil. Edições 70: Rio de Janeiro, 1967
FRANCO JR, Hilário. A Idade Média Nascimento do Ocidente. Edição 2ª. Brasiliense: São Paulo, 2006
GANSHOF, F.L. Que é Feudalismo? Coleção Saber. 1985
LE GOFF, Jacques. As Raízes Medievais da Europa. Edição 3ª. Editora Vozes: Petrópolis, 2010.
LE GOFF, Jacques. Civilização do Ocidente Medieval. EDUSC: São Paulo, 2004
LE GOFF, Jacques. Em Busca da Idade Média. Edição 3ª. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2003
LE GOFF, Jacques. O Maravilhoso e o Cotidiano no Ocidente Medieval. Edições 70.
Site da Imagem: http://www.miriamsalles.info/cndvirtual2004/feudos/index.htm
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