domingo, 17 de julho de 2011


Por Rafael Oliveira


Com o surgimento das cidades no século XII, passou a ocorrer uma circulação maior de homens oriundos de vários locais, fossem eles mercadores, peregrinos, etc. Com isso, houve também uma maior troca de conhecimentos e saberes. “Durante o século XII, quando o ocidente nada tem a exportar além de matérias primas, embora já esteja despontando o desenvolvimento têxtil, os produtos raros e os objetos de valor vêm do Oriente, de Bizâncio, Damasco, Bagdá ou de Córdoba. Junto com as especiarias e as sedas, os manuscritos trazem a cultura Greco - árabe para o Ocidente cristão”. (Le Goff)

Le Goff diz que o árabe, de início, era apenas um intermediário, pois as obras clássicas pertenciam aos cristãos heréticos, que doaram-as às bibliotecas e escolas muçulmanas, antes delas retornarem para a Cristandade Ocidental. Só que a essa altura, “o Ocidente não ouve mais grego; o que Abelardo deplora e por isso exorta as religiosas do Paracleto a corrigir essa lacuna, superando assim os homens no domínio da cultura. A língua cientifica é o latim. Originais árabes, versões árabes de textos gregos, originais gregos são então traduzidos tanto por indivíduos isolados quanto, aliás mais frequentemente, por equipes.” (Le Goff)
Uma dessas equipes, formada por Pedro, o Venerável, foi a responsável pela tradução do Corão. “ Pedro, o Venerável, foi o primeiro a conceber a idéia de combater os muçulmanos não no plano militar, mas no plano intelectual. Para refutar sua doutrina, é preciso conhecê-la.” (Le Goff). Dentre as várias cidades que receberam contribuições do saber Oriental, a que mais se destaca é Paris, devido ao seu ensino teológico “junto” com o ramo da filosofia chamado de dialética.
Uma oposição que podemos explorar, é a visão de Paris que cada grupo possuía. Para os cistercienses, Paris é “o antro do Diabo, onde se mesclam as perversões do espírito assoladas pela depravação filosófica e as torpezas de uma vida em meio ao jogo, ao vinho e às mulheres. A grande cidade é o lugar da perdição: Paris é a Babilônia moderna". Como fica bem claro nas palavras de São Bernardo: "Fujam do meio da Babilônia, fujam e salvem suas almas. Apressem-se todos juntos em direção às cidades do recolhimento (os mosteiros), onde poderão se arrepender do passado, viver na graça durante o presente, e esperar com confiança o futuro. Vocês encontrarão muito mais nas florestas que nos livros. A madeira e as pedras ensinarão mais do que qualquer mestre."
A tradição cisterciense significa uma mudança de hábito. O homem não pertence mais ao mundo,somente pertence a Cristo. Os cistercienses desejavam que fossem purificados pelas Escrituras, e pelas riquezas que nelas se encontravam. Pierre de Celles diz: ”Ó Paris, como sabes arruinar e iludir as almas! Em ti, as malhas de vícios, as pragas dos males, as flechas do inferno põem a perder os corações inocentes. Feliz a escola onde, ao contrário dessa, é Cristo quem ensina aos nossos corações a palavra de sua sabedoria, onde, sem trabalhos nem cursos, nós aprendemos o caminho da vida eterna! Aqui não se compram livros nem se paga ao professor de escrita, não há a balbúrdia das disputas, nenhum sofismo complicado, a solução de todos os problemas é simples, aqui se aprendem as explicações de tudo.” (Le Goff).
Essa escola citada por Pierre de Celles, é a escola urbana, a escolástica. Essa doutrina utilizava a razão junto com a fé, fazendo uma releitura das Escrituras através de filósofos pagãos como Aristóteles e Platão. Para eles, Paris era a “ fonte de todo prazer intelectual” (Le Goff). O abade Filipe de Harvengt, indo em oposição a São Bernardo, vê a cidade luz como uma cidade divina, a Jerusalém Celeste: “ Levado pelo amor à ciência, eis-te em Paris e encontraste essa Jerusalém que todos desejam. [...] Cidade feliz onde os santos livros são livros são lidos com tanto zelo, onde seus complicados mistérios são resolvidos graças aos dons do Santo Espírito, onde há tantos professores eminentes e há tanta ciência teológica que se poderia denominar a cidade das belas letras!” (Le Goff).
Segundo Le Goff, "a oposição fundamental entre os novos eruditos das cidades e os meios monásticos, cuja renovação encontra, no século XII, além da evolução do movimento beneditino ocidental, as tendências extremas do monaquismo primitivo, estampa-se nessa exclamação do cisterciense Guilherme de Saint-Thierry, amigo íntimo de São Bernardo: 'Os irmãos de Mont-Dieu! Eles trazem, para as trevas do Ocidente, a luz do Oriente; e para o frio das Gálias, o fervor religioso do antigo Egito; isto é, a vida solitária, espelho da vida do céu'. Assim, por um curioso paradoxo, no momento em que os intelectuais urbanos colhem,na cultura greco-árabe, o fermento do espírito e os métodos de pensamento que iriam caracterizar o Ocidente e criar sua força intelectual - a clareza do raciocínio, a preocupação com a exatidão científica, a fé e a inteligência mutuamente apoiadas -, nesse momento o espiritualismo monástico reclama, no próprio coração do Ocidente, o retorno ao misticismo do Oriente".
Dentre os intelectuais urbanos, o que mais se destacou foi o goliardo Pedro Abelardo, conhecido como o primeiro professor. Durante sua vida conseguiu vários inimigos, provavelmente pelo seu prazer de desmistificar os ídolos. O principal deles, foi São Bernardo. Abelardo que foi taxado por Paul Vignaux como “o cavaleiro da dialética”, pois vencia seus inimigos através de argumentos, teve que se afrontar com São Bernardo, defensor do uso da força e da cruzada armada. Le Goff explica que “ é o seguidor de São Bernardo, Guilherme de Saint-Thierry, que desencadeia o ataque. Em uma carta a São Bernardo, ele denuncia o novo teólogo (Abelardo) e incita seu ilustre amigo a persegui-lo. São Bernardo vai a Paris, tenta desviar os estudantes, aliás com pouco sucesso, e fica persuadido da gravidade do mal difundido por Abelardo. Uma entrevista entre os dois homens resulta em nada. Um discípulo de Abelardo sugere uma reunião de confronto em Sens, diante de uma Assembleia de teólogos e bispos. O mestre se esforça por arrebatar mais uma vez o auditório. São Bernardo, sub-repticiamente, muda todo caráter da Assembleia. Transforma o auditório em concilio, e seu adversário em acusado. Na noite precedente à abertura dos debates, se reuni com os bispos e lhe fornece um dossiê completo que retrata Abelardo como um perigoso herético. No dia seguinte, Abelardo pode apenas contestar a competência da Assembleia e apelar ao papa. Os bispos transmitem à Roma, uma condenação muito mitigada. São Bernardo, alarmado, vence-os todos em velocidade. Seus secretário leva aos cardeais que lhe são inteiramente devotados as cartas que exigem do papa uma condenação de Abelardo, cujos livros são queimados em São Pedro.”
Abelardo arruinou o sacramento essencial do cristianismo, a penitência. Ele botava o homem como figura central, ao invés do pecado, o que ia totalmente contra a Igreja. Assim, nas cidades e escolas urbanas, havia uma humanização dos sacramentos.Ou seja, a Igreja continuava no comando do ensino, apesar do crescente número de intelectuais laicos, e de grande repercussão que suas idéias tomavam.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

LE GOFF, Jacques - “O Século XII. Nascimento dos intelectuais.” in “Os Intelectuais na Idade Média” - Editora Brasiliense – 1993 – São Paulo.

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