O conceito de heresia se
define através de um desvio de uma verdade ou doutrina estabelecida. A palavra
herege se originou do grego hairesis
e do latim haeresis, que quer dizer
seguir uma linha doutrinária contrária ao que foi definido pela fé da Igreja.
Segundo M.D. Chenu, herege é aquele que escolheu se isolar de uma verdade.
É
possível dizer que as heresias foram catalogadas desde o século II, em especial
com a busca de consolidação da ortodoxia cristã e formação do cânon bíblico,
por meio do combate às tendências interpretativas divergentes, como o
Marcionismo, Docetismo e Montanismo (algumas dessas embasadas no gnosticismo).
Segundo Carter Lindberg, “a heresia e ortodoxia cresceram juntas, em mútua
interação” (p. 40).
A lista de heresias foi
sendo aumentada durante a Idade Média por nomes como Santo Agostinho e Isidoro
de Sevilha, que diziam que herético é aquele que não somente está errando, mas se
obstina no próprio erro. A fonte bíblica vem de 1 Coríntios 11, 19, que diz:
“Convém que haja heresias para que se veja o que se deve aprovar”. Há também algumas referências em Tito 3,10: “Depois de uma primeira e uma segunda advertência, é
preciso temer e não freqüentar o homem herético.”
Segundo Monique Zerner, desde
Constantino a heresia se ligou ao Estado. Os que recusavam aos Pais da
Igreja eram perseguidos. As discussões sobre heresia não ocorreram de forma tão constante durante a alta idade média, mas ressurgiram com força no século X e, mais especificamente, no
século XII, após a crise gregoriana, sob impulso de Cluny, com nomes com São
Bernardo e Pedro, O Venerável.
Mas, antes de falar diretamente das heresias (que a partir dos séculos XII e XIII alcançarão seus ápices), é necessário dar
um foco maior ao contexto histórico da época, para facilitar o entendimento. Embora fosse um período de maior
impulso à Cristandade, iniciado com a Reforma de Gregório VII (que reafirmava a
concepção agostiniana de controle e ordenação social norteada pela Igreja), era
também um momento em que apareciam as primeiras críticas mais incisivas à
Igreja. A busca de autonomia política e interesses materiais pela mesma
desencadearão uma série de censuras a este movimento.
O controle da sociedade
pela Igreja, baseado na crença de que o próprio Deus o havia estabelecido (o
que sem dúvida foi uma das principais armas ideológicas da Igreja para sua
institucionalização como reguladora política), acentuava as manifestações de
oposição. Tais manifestações foram frutos não só da ortodoxia (cistercienses,
franciscanos e dominicanos), mas também daqueles que foram considerados
heréticos (cátaros, valdenses, entre outros) – ver página 79, FRANCO JR,
Hilário. Conforme Monique Zerner, tais movimento se constituíram como uma
prefiguração da Reforma Protestante. Serão abordados de forma detalhada mais à frente algumas das heresias que mais causaram repercussão, a partir do século
XII.
Segundo Nachman Falbel, os séculos
XII e XIII podem ser denominados de séculos heréticos. Mas os movimentos desta
época se diferenciaram daqueles do séculos IV e V, quando as heresias eram
marcadas pelas discussões teológicas e filosóficas em torno da natureza de Cristo
(discussões marcantes no período da antiguidade tardia e restrita a uma elite
eclesiástica, como no caso do Arianismo, por exemplo). Neste período de baixa idade
média há um grande número de heresias, mas que são predominantemente de cunho
popular.
E, embora os movimentos considerados heréticos ganhassem mais intensidade nos séculos XII (na segunda metade) e XIII, Zerner diz que as narrativas monásticas permitem dizer que já no século XI e primeira metade do XII, têm-se alguns casos consideráveis de heresia. Estes casos, embora tenham repercutido de alguma forma, não tiveram tanta notoriedade quanto os que viriam. Entretanto, eles serviram para indicar o progressivo aumento de oposição ao papado que ficaria evidente nos séculos posteriores.
Pode-se começar pelo
caso de Orleáns, que foi narrado pelo abade de Ripoll, na Catalunha, em 1022,
quando 14 clérigos foram queimados, supostamente por terem negado os
sacramentos. Outro caso, narrado por Raul de Glaber, fala de uma fraternidade
de homens e mulheres que colocavam seus bens em comum, exaltavam a castidade e
rezavam sob liderança de um homem chamado Geraldo, que também acabaram
queimados. A Reforma Gregoriana se propõe a lutar contra a heresia simoníaca,
que se constituía pela compra de cargos na Igreja e o Nicolaísmo, que era o
concubinato de clérigos. Bernard de Claraval se volta contra heresia e grandes
intelectuais, como Pedro Abelardo (mesmo sem muitos motivos para isso, afinal, a
escolástica não era contrária a Igreja, apenas buscava o saber de outra forma),
que é acusado de racionar sobre a trindade. Bernard persegue também Arnaldo da
Brescia, devido suas pregações contra o clero local. Além desses, alguns outros
casos mais, mas que não será possível citar aqui.
O aumento de
contestações aos dogmas da Igreja levará ao Concílio de Verona, em 1184, que
nomeará bispos para visitarem paróquias suspeitas de heresias, sendo esta a
primeira tentativa de fato instituída. Estes bispos receberam o nome de
inquisidores ordinários. Mas ainda que se tenham estes dados, a Inquisição não
tem um momento certo de início, sendo resultado de longa evolução durante um período
em que a Igreja se sentia ameaçada. O papa Inocêncio III vai pessoalmente ao
sul da França para combater, juntamente com diversos missionários, as heresias.
Mas para que o combate surtisse efeito, era necessária a ação do Estado, o que
deixa claro o caráter político da perseguição contra os opositores dos dogmas.
É importante ressaltar que se fala de um período em que Igreja e Estado
andam juntos e como Jeffrey Richard bem definiu, a heresia podia ser
considerada como um “desafio à ordem temporal divinamente ordenada, e não
podia, portanto, ser tolerada.” (p. 33). Por isso, a ação do Estado, instituído
por Deus, era necessária.
Cátaros e Valdenses
Neste sentido, pode-se
destacar a heresia cátara, que é mencionada pela primeira vez em 1163, nos
Sermões contra os cátaros do monge Eckbert Von Schönau. Eles eram chamados de
Cátaros, termo que significa “puro” ou “perfeito”, pois pregavam um retorno ao
cristianismo puro, havendo uma grande preocupação dos praticantes com a pureza.
Nasceu nos Países Baixos e Renânia, mas tornou-se mais forte no Midi, onde ficaram conhecidos como Albigenses, devido à cidade de Albi. Constituíram a
principal ameaça ao catolicismo, ao serem anticlericais.
Os cátaros acreditavam
que o corpo e a alma eram criações diferentes (o corpo era mau e a alma era
boa). Rejeitavam todas as coisas materiais (carne, sexo, riqueza). Eles negavam
o purgatório, as missas aos mortos, a transubstanciação e o batismo de
crianças. Sua cerimônia era consolamentum,
que era a imposição de mãos, sendo este o ato de libertar o adepto da carne e
torná-lo unido ao espírito, fazendo do iniciado um ser puro. Tinham crença
dualista, definindo um deus bom e um deus mau, que neste caso, seria lúcifer, e
a luta perpétua entre bem e mal. Importações estas do maniqueísmo, que a Igreja condena desde Agostinho.
Embora defendam o bem, crêem
neste mesmo bem somente no mundo vindouro. Este mundo teria sido criado por um deus mau. Assim sendo, tudo que existia no mundo era parte do mal, inclusive a Igreja. Os cátaros se viam
como a mais pura forma de Cristianismo. A Igreja reagiu através de persuasão
(através de movimentos missionários), repressão (penitências, mortes e exílio)
e satanização (propaganda estigmatizante) do movimento. As ações do Concílio de
Verona não surtiram efeito, o que progressivamente fez Inocêncio III empregar
uma gama de medidas repressivas, o que resultará em grandes embates contra os
cátaros. Inocêncio equiparará heresia à traição e instituirá, com impulso de
Cister, a cruzada contra os albigenses, formada em 1209 e conduzida até o sul
da França. A luta por muito tempo foi inconclusiva, mas no fim houve o massacre
dos cátaros. Em 1326, o último cátaro foi queimado em Carcassone e o movimento
foi finalmente reprimido.
Outro movimento contemporâneo
ao catarismo e que ganhou grande notoriedade foi o valdeísmo. Os valdenses eram
seguidores de um usurário de Lyon, Valdo, que renunciou sua riqueza, enveredou-se numa vida de pobreza e se tornou mendigo. Ele traduziu a bíblia do
latim para o vernáculo. Seus seguidores foram conhecidos como “pobres de Lyon”,
pois renunciaram a propriedade privada e viviam de caridade, buscando converter
outras pessoas para uma vida simples e de fé. Em 1184, foram condenados como
hereges e mesmo sofrendo perseguição, plantam raízes na França meridional e
Itália setentrional, espalhando-se pela Espanha, Alemanha e Áustria. Seus
sacramentos se baseavam em crenças do novo testamento (batismo, eucaristia e
casamento).
O lema principal dos
valdenses era a pobreza e acusavam a Igreja de Roma de ser negligente, por não
impor absoluta pobreza ao seu clero. Rejeitavam a tradição católica e suas
crenças, como o purgatório, orações pelos mortos e dias santos. Acreditavam num
mínimo de rituais (comunhão uma vez por ano e observância aos domingos). Foram
ferozmente perseguidos e muitos membros queimados. Mas é importante verificar que
muitos valdenses se reintegraram ao seio da Igreja e foram considerados por
Inocêncio como “pobres católicos”.
Feiticeiros
Com referência à
feitiçaria, é também na baixa idade média que ocorre grande parte das
condenações. Já eram apontadas como negativas pelo corpo eclesiástico práticas
que visavam prever o futuro, poções e feitiços em geral. A grande maioria
dessas práticas eram próprias dos ambientes rurais, que se mantiveram presos às
práticas pré-cristãs das tradições célticas, locais onde o cristianismo
penetrou de maneira mais tardia e com menos intensidade que nas cidades. Essas
práticas do folclore pagão são abordadas como sendo uma das categorias do
estereótipo do sabá (construído da junção dos relatos folclóricos em
sedimentação com a cultura erudita dos inquisidores), como bem trabalhou Carlo
Ginzburg, a partir da difusão da idéia de mulheres que eram conduzidas em vôos
noturnos na garupa de animais pela deusa Diana (ou Richella, Epona,
Herodíade, dependia da localidade), para se reunirem em determinados locais e
realizarem seus rituais.
Até o século XI, a
posição da Igreja com relação às práticas consideradas como feitiçaria não foi extremista. Conforme o Canone Episcopi,
os feiticeiros eram vítimas de ilusões do diabo, sendo suas crenças derivadas do mesmo. Mas no desenrolar do dos séculos XII, no espírito de profunda luta
contra os movimentos heréticos, a Igreja se torna cada vez mais agressiva. “Os
clérigos começam a afirmar que o diabo preside às reuniões dos hereges e até
mesmo que estes consideram Lúcifer o verdadeiro deus, injustamente expulso do
céu (bula Vox in rama de Gregório IX,
de 1233)” (BASCHET, p.240).
Geralmente eram acusados
de adorarem ao diabo, na forma de um bode, fazerem orgias por ele presididas e
copularem com o mesmo, além de planejarem um complô (acusação também aplicada
aos leprosos) contra à Cristandade. É em tal ambiente que se consolida a “caça
às bruxas”, também confirmada pelo papado no Concílio de Latrão IV. Com a
consolidação da Inquisição, os feiticeiros “aproximam-se
também dos ‘cristãos que aderem ao judaísmo, judeus convertidos e depois judaizantes’.”
(SCHIMITT. P. 430). Feiticeiros eram vistos como cristãos falsamente
convertidos. Segundo Jeffrey Richards “a perseguição simultânea dos hereges e
bruxos pela inquisição papal, estabelecida em 1227, é considerada por Russell
como significado que a bruxaria havia então passado a ser vista como uma forma
de heresia” (p.85). Aspecto este relevante, ainda mais se for levado em
consideração que muitos desviantes da Igreja iam para as práticas de
feitiçaria.
A grande maioria das pessoas acusadas de bruxaria era condenada à morte pela fogueira, forca ou afogamento. Ainda assim, antes de 1300 foram poucos os processos por bruxaria, mas com o tempo, muitas outras categorias de hereges, como cátaros e valdenses, acabavam confessando crime de bruxaria, mediante as torturas, algo que era bastante comum. Muitos. que se consideravam vítimas de bruxaria, faziam justiça por eles mesmos, linchando aqueles que eram considerados bruxos. Mudanças climáticas, más-colheitas, pragas e doenças também eram motivos para culpar os feiticeiros de terem rogado pragas e maldições. Tais aspectos indicaram um aumento dos processos de bruxaria entre fins do século XIV e início do XV - principalmente no que diz respeito a este último aspecto, já que aquele foi um período em que a fome, inundações, más-colheitas e incertezas se evidenciavam. A explicação para tais fenômenos só poderia ser de ordem sobrenatural. Richards localiza neste momento 84 julgamentos, entre os anos de 1365 e 1428.
Um dos casos mais
famosos de bruxaria é o de Jacques De Molay, acusado juntamente com os outros
templários de serem idólatras de uma cabeça diabólica, além de sodomitas. “Mais
de 60 deles foram levados à fogueira, dentre os quais o grão-mestre Jacques de
Molay e a ordem foi suprimida” (SCHIMITT, p. 431). Os hussitas também foram
considerados feiticeiros opositores da Igreja.
Assim, os feiticeiros
foram a representação perfeita do mal, responsabilizados pelos males sociais,
por terem práticas divergentes do cristianismo católico. É na Idade Média que é
formulado o grande modelo persecutório que também será reproduzido
posteriormente na Idade Moderna (ver BASCHET, p. 242).
Consolidação da Inquisição
É justamente em meio aos
movimentos considerados heréticos, vai se desenrolando, dentro de um contexto
de luta contra a ameaça do poder papal, todo um processo eclesiástico que
progressivamente dará corpo à Inquisição. Por mais que a Igreja tentasse
controlar os movimentos, as heresias eram cada vez mais difundidas. Há assim em
1215, em meio à luta contra os Cátaros, o IV Concílio de Latrão, presidido por
Inocêncio III, e sendo este uma das principais reformas da Cristandade,
seguindo o impulso ao fortalecimento da mesma, que ocorria com mais intensidade desde a
Reforma Gregoriana.
Segundo Jacques Le Goff,
Latrão IV “encoraja o movimento de repressão que pretende guardar a pureza da
reforma (condenação dos hereges, dos judeus, dos homossexuais, dos leprosos).
Abre as portas da Inquisição.” (p.75). O concílio buscará codificar os
regulamentos da Igreja para enfrentar a heresia e também solicitar o apoio
secular para isso.
Assim, os soberanos
incorporavam as leis do Concílio Lateranense em seus reinos, condenando à
fogueira várias pessoas. É com Latrão que a heresia se torna crime de Lesa
Majestade, ao ser aplicado o direito romano, o que significa que todo o arsenal
de penas contra a heresia poderia ser utilizado, do confisco de bens – o que
era muito comum – à exclusão das funções públicas. Ocorre uma aliança entre os
reis e Igreja na luta contra as heresias, havendo o estabelecimento de cânones
que definem cada vez mais as heresias.
Latrão IV reafirma o
caráter da comunhão, desembocando posteriormente no Corpus Christi. Ora, se o
corpo de Cristo passa a ser comungado por todos, deve haver o controle desse
corpo, para que ele não seja profanado. A heresia, ao contestar a Igreja,
contesta também a hierarquia social, que é estabelecida por Deus. Assim, o
herético é diabólico. Inocêncio III lança, desta forma, a criminalização da heresia.
A consolidação da
inquisição vem um pouco mais tarde, com a constituição da “Inquisição
Delegada”. Criada por Gregório IX, finalmente ela ganha o corpo funcional. A
máquina para lidar com heresia é finalmente estabelecida, sendo formalmente
criada em 1233, já combatendo o catarismo. Gregório IX tornou-se seu
coordenador e lutou contra os apóstatas.
Mas como dito no início
deste texto, ocorrem movimentos urbanos que buscaram, de certa forma, fazer
a igreja rever seus conceitos. Estes movimentos são as ordens mendicantes.
Perdidos os princípios de Cister, eles serão recuperados por um burguês, que
irá propor formas da burguesia enriquecida aplacar sua consciência por meio de
esmolas. Propõe que seus beneficiários não sejam monges isolados, mas sim homens
da cidade que abraçariam a pobreza. Este burguês foi o italiano São Francisco
de Assis, que fundará a ordem mendicante dos Franciscanos.
No mesmo caminho, em
1216 outra ordem mendicante é formada, dessa vez, pelo espanhol São Domingos. É
importante saber da criação destas ordens, pois eram a forma urbana de
religiosidade. Elas representavam o desejo de evangelizar o meio urbano. São
versões monásticas urbanas. Desta forma, como diz Renata Rozental Sancovsky, o
“mosteiro venceu a catedral”, afinal, as concepções monásticas são levadas para
dentro da cidade. Com o tempo, a Igreja passa apoiar estas ordens e, em menos
de 15 anos, alcançaram um grande sucesso. Os dominicanos se preocuparam com a
luta contra as heresias, como é perceptível no protagonismo do próprio Domingos
de Gusmão, ao criar a “milícia de Jesus Cristo” já em 1219 e os membros dessa
milícia eram preparados para combaterem os heréticos, mantendo a pureza do
catolicismo.
Em 1222 já ocorriam os
primeiros tribunais. Em 1231, Gregório IX deixa sob responsabilidade dos
dominicanos a direção da Inquisição. O processo inquisitorial se iniciava com a
investigação, de maneira sigilosa. O acusado não tinha direito a um advogado e justamente por haver uma acusação, havia necessidade de obter um reconhecimento
de culpa, ou seja, confessar. Isso muitas vezes acontecia mediante à tortura,
algo que se tornou comum a partir de 1252, quando a inquisição adquiriu este
direito. É errôneo achar que o objetivo da inquisição era matar. Quanto mais a
pessoa permanecesse viva era melhor. O intuito era purificá-la de seus erros pela tortura,
pois o sofrimento purifica. O próprio papa Inocêncio IV não autorizava nem
mutilações nem mortes. O objetivo era fazer a pessoa se arrepender. Os que não
se arrependiam eram entregues ao braço secular para punição e tinham suas
propriedades confiscadas.
A Inquisição medieval é
anti-herética e não anti-judaica, voltando-se prioritariamente para os cristãos-velhos desviantes. Não significa que o antijudaísmo não era forte naquele momento.
Pelo contrário. É um período em que pogroms e expulsões de judeus são comuns,
atos estes embasados em mitos antijudaicos, insuflados pela Igreja (Pedro, O
Venerável escreveu um tratado, conhecido como “Contra os Judeus), que tinham grande aderência entre a população. Filipe Augusto expulsou judeus da França e o
Concílio de Latrão IV, por exemplo, instituiu vestimentas especiais para os judeus,
como forma de distinção dos cristãos. Mas, em primeiro lugar, é necessário
entender que, na grande maioria das vezes, os judeus foram julgados pelos seus “crimes” diretamente pelo braço
secular (ainda que a Igreja não deixasse de ter um papel central, a exemplo de Latrão IV), já que, como não eram cristãos, não poderiam ser julgados pelo tribunal
e acusados de heresia. De modo mais geral, judeus
convertidos ao cristianismo é que eram julgados pelo tribunal da inquisição,
geralmente acusados de judaização.
Mas será que nenhum
judeu não convertido foi perseguido pela inquisição? É um erro pensar assim.
Entre os séculos XI e XIII, em meio aos cada vez mais anti-judaicos discursos
de eclesiásticos, o judaísmo é, em inúmeros casos, assemelhado a uma heresia e,
por mais que a inquisição não tivesse jurisdição sobre os judeus não convertidos
de modo geral, passou a ter, a nível de casos mais específicos, sobre os judeus
que fossem considerados suspeitos ou acusados de ajudar hereges ou promover
doutrinas judaicas entre cristãos, os levando, deste modo, à heresia. Entretanto, este ainda não é o momento para caracterizar a inquisição como sendo
anti-judaica, já que a maioria dos casos de heresia envolveram cristãos-velhos.
A inquisição
anti-judaica vai ganhar força na Península Ibérica, já no período moderno, quando ela terá o seu apogeu, devido à existência de grandes comunidades judaicas.
Estas comunidades, que por muito tempo viveram em clima de relativa tolerância
com a comunidade cristã e muçulmana (enquanto esta última ainda era dominante),
com o levantamento da unidade política de Castela e Aragão e a alegação da também
necessária unidade religiosa, passam a ser alvos de políticas de conversão
forçada. Há progressivamente o aprofundamento de um sentimento de hostilidade
contra aqueles que não são cristãos, alimentado pela necessidade de
restabelecer a “ordem gótica” (como diz Pierre Guichard) de um “povo” sob uma
fé (cristã), no período da Reconquista contra os muçulmanos.
Somente por meio da
conversão, os judeus e a tradicional burguesia judaica (que já era confrontada
pela ascensão da burguesia cristã e culpada pelos problemas socais, conflito
este explorado pela Igreja) poderiam manter seus direitos e posições. E foi o
que muitos fizeram. Mas num momento em que a Espanha passa por dificuldades,
como a guerra e a peste, há a necessidade de localizar um bode expiatório. “Os
conversos ou cristãos-novos são acusados de usurparem as melhores posições e
empestarem, com a heresia judaica, toda a Espanha” (NOVINSKY, p.27). Mesmo
convertidos, os judeus são alvos de perseguição, pois passavam a ser vistos
como infiéis.
Além da desconfiança em
cima dos conversos (sempre havia a suspeita que continuavam a praticar o
judaísmo, sendo falsos cristãos), que resultava em massacres, como o que
ocorreu em Toledo em 1449, houve também a criação de uma legislação racista na
Península Ibérica baseada na pureza de sangue, adotadas pelas corporações
profissionais. A determinação era que nenhum descendente de judeu até a sexta
geração poderia pertencer às corporações de comércio, entrar em universidades,
entrar em ordens militares. Eram realizados exames para confirmar. A Igreja
aprovou tal legislação e os Reis Católicos convidam a atuação da inquisição na
Espanha, para os casos em que cristãos novos ocupavam cargos de forma ilegal ou
praticavam secretamente o judaísmo. Havia assim a busca de eliminação daquilo
que foi considerado como “heresia judaica”, por meio de propaganda eclesiástica
anti-judaica, que buscava estabelecer a “purificação da fé”, em cooperação com
as ambições da burguesia cristã, levando muitos judeus às fogueiras.
Assim, a respeito dos
movimentos heréticos, pode-se concluir com o que diz Anita Novinsky: “O ideal
da Igreja era manter a unidade da doutrina, que nesse tempo ainda se encontrava
fraca para enfrentar dissidências. O questionamento a que estava exposta então
a religião produziu diversos problemas do bem e do mal, da natureza do homem e
da Igreja, sobre a própria conduta da vida e sobre o fim do homem. Criaram-se
assim numerosas seitas, que alarmaram os defensores da ortodoxia, levando-os a
se lançarem numa verdadeira cruzada pela purificação da fé.” (p.18).
Referências Bibliográficas:
BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal – Do Ano
Mil à Colonização da América. Editora Globo: São Paulo, 2006.
FALBEL. Nachman. Heresias Medievais. Editora
Perspectiva: São Paulo, 1999.
FRANCO JR, Hilário. A Idade Média – Nascimento
do Ocidente. Edição 2ª: Brasiliense: São Paulo, 2006.
GINZBURG, Carlo. História Noturna – Decifrando o
Sabá. Companhia das Letras: São Paulo, 2007.
GUICHARD, Pierre. Islã. In: Dicionário Temático do Ocidente Medieval, Vol 1. Org.: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schimitt. EDUSC: São Paulo , 2002.
JOHNSON,
Paul. História
do Cristianismo. IMAGO Editora: Rio de Janeiro, 2001.
LE GOFF, Jacques. Em Busca da Idade Média.
Edição 3ª. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro.
LINDBERG, Carter. Uma Breve História do
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NOVINSKY, A.W. A Inquisição. Edição 2ª. Editora
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RICHARDS, Jeffrey. Sexo, Desvio e Danação – As
Minorias na Idade Média. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1993.
SCHIMITT, Jean-Claude. Feitiçaria. In: Dicionário Temático do Ocidente
Medieval, Vol 1. Org.: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schimitt. EDUSC: São
Paulo, 2002.
Site da Imagem: http://pt.wikipedia.org/wiki/Catarismo#mediaviewer/File:Cathars_expelled.JPG
Parabéns, foi o melhor e mais completo artigo que encontrei na internet sobre estes movimentos heréticos da idade média. Continue assim que você vai ao longe!!!
ResponderExcluirIsso não resolveu minha pergunta
ResponderExcluirVocê tem este "Sermões contra os Cátaros", de Eckbert?
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