terça-feira, 10 de julho de 2012


Por Gabriel Araújo

Uma sociedade democrática de alicerces escravistas


            Durante o processo de colonização, a sociedade colonizadora por vezes entrava em contato com uma sociedade já existente. Se os colonizadores empregavam um método de produção escravista, era de suma importância justificar a prática para legitimar tal submissão perante as forças contrárias ao processo de escravização. No Brasil colonial, tais forças contrárias eram compostas pelos nativos, que possuíam cultura própria, resistente à colonizadora; pelos jesuítas, que buscavam o controle do acesso à mão de obra cativa sob o respaldo da bula papal de 1537; e pela própria Coroa portuguesa, que em diversas ocasiões demonstrava um caráter ambíguo em relação à política indigenista, buscando agradar tanto os interesses dos colonos quanto de Roma.
            Durante o século XVI, segundo John Monteiro (1994), os colonos demonstravam uma mentalidade de caráter progressista a favor da escravidão indígena. As fontes da época sugeriam que o colono que não fizesse o uso de tal força de trabalho, viveria uma vida primitiva e sem contribuição para o progresso e desenvolvimento da colônia.  O autor afirma que “sem os índios para abrir as roças, plantar as searas e carregar os produtos, os portugueses de São Paulo mal conseguiriam manter suas próprias famílias, tamanho era o desdém pelo trabalho manual”[1]. A sociedade paulista foi gradativamente estruturada sobre a necessidade de uma produção de subsistência da própria colônia, principalmente quanto à produção e transporte de alimentos, que eram enviados para os povoamentos do litoral. Assim, existia a necessidade de mão de obra barata para que o excedente fosse produzido. O primeiro século de colonização foi o período de instituição e adequação da prática escravista na sociedade colonial brasileira.
            No século XVII, o uso da mão de obra escrava cativa gradativamente tornava-se uma tradição na sociedade colonial, onde a dominação necessária para a escravização de um povo era reforçada pela imposição da cultura colonizadora e dizimação da sociedade e da tradição indígena. A imposição da cultura era reforçada através da evangelização dos índios nos aldeamentos, como diz John Monteiro: “É difícil estabelecer até que ponto os paulistas procuravam doutrinar os índios na Fé católica. Com certeza, porém, a religião dos senhores reafirmava as relações de dominação e servia como arma para a manipulação dos mesmos” [2]. Os colonos buscavam “introduzir os índios no mundo católico através do batismo e da adoção de nomes cristãos” como uma forma de estabelecer uma dominação de caráter paternalista [3]. Os portugueses logo de início também buscaram eliminar os indivíduos responsáveis pela perpetuação da religião e tradição dos nativos, como os pajés e os caraíbas.
            Com a expulsão dos jesuítas em 1759, o controle da mão de obra cativa passou inteiramente para a administração dos colonos, que através das Câmaras Municipais buscavam agora legitimar a escravidão indígena perante a Coroa. Claramente, os paulistas administravam os índios como escravos, mas não aplicavam essa terminologia, e sim a de administrados, como menciona John Monteiro: “Os Paulistas, posto que não davam aos índios domesticados o nome de cativos, ou escravos, mas só o de administrados, contudo dispunham deles como tais, dando-os em dotes de casamentos, e a seus credores em pagamento de dívidas” [4]. Conclui-se assim, que controlar a terminologia, a descrição de um determinado termo, é possível criar os contornos sociais para a instituição de uma determinada prática de dominação, transformando-a assim em costume.
            Segundo o autor, as gerações nascidas já inseridas na sociedade colonial eram muito mais adequadas a esse processo de dominação, sendo de maior valor do que os cativos vindos das missões de descimento,  como diz o autor: “pode-se destacar uma variação relacionada à diversidade e à especialização ocupacional. A distinção fundamental situava-se entre os índios recém-introduzidos e aqueles nascidos no povoado (crioulos) ou plenamente adaptados ao regime (ladinos)”[5]. Tal distinção, somada à diminuição demográfica da população nativa para dar vazão à necessidade de mão de obra, fazia com que o colono buscasse mecanismos de reprodução e manutenção dessa sociedade escravista na colônia, que não estivessem vinculados diretamente às expedições de descimento[6]. Segundo John Monteiro, “diante das vicissitudes do apresamento, procurava-se (os colonos) forjar estruturas no interior da própria sociedade colonial, fomentando a preservação do sistema” [7]. Também era incentivado o apadrinhamento, de caráter paternalista, como imposição da superioridade[8]. O autor também destaca que “os registros de batismo, ao sugerir a existência de um padrão hierarquizado, podem expressar estratégias de socialização”[9], e ”o compadrio representava um passo significativo na integração dos índios à sociedade paulista” [10].
          Na medida em que a sociedade se adequava em torno do modo de produção escravista de monocultura, a população nativa se transformava de acordo com esses moldes. Monteiro diz que “nas unidades coloniais, os índios mantinham roças para seu próprio sustento, o que podia possibilitar a manutenção de um elo entre formas pré-coloniais e coloniais de organização de produção” [11]. O colono buscava de maneira legal suprimir as tentativas de integração da sociedade indígena ao comércio colonial, para que não houvesse uma competição e assim desvalorização da produção, e que se perpetuasse a mentalidade de dominação e dependência à sociedade escravista. Para John Monteiro, “diversas vezes ao longo do século XVII, as autoridade da Colônia lançaram ofensivas contra esta economia informal movimentada pelos índios”[12].  Também surge a problemática de atividades caracterizadas como criminosas por parte dos índios na sociedade colonial, “tais atividades se tornaram corriqueiras”[13] , e “esta onda de atividades “criminosas” refletia os padrões de ajustamento do índio à sociedade escravista” [14].
           Concluindo, através de contornos jurídicos, práticas sociais e definições terminológicas, foi possível ao colono português legitimar a prática da escravidão durante o processo de colonização do Brasil, bem como criar os mecanismos de reprodução e perpetuação da prática, algo que se reflete até os dias atuais numa sociedade que se denomina democrática, porém fundamentada em alicerces escravistas.



Notas:

[1] MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 136
[2] Ibiden p. 159
[3] Ibiden p. 159
[4] Ibiden p. 147
[5] Ibiden p. 156
[6] Ibiden p. 167
[7] Ibiden p. 168
[8] Ibiden p. 161
[9] Ibiden p. 162
[10] Ibiden p. 163
[11] Ibiden p. 171
[12] Ibiden p. 173
[13] Ibiden p.173
[14] Ibiden p. 174

Referências Bibliográficas:

MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994

Site da Imagem: http://www.anovademocracia.com.br/no-65/2798-indios-latifundio-segue-matando-e-invadindo-